quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Das gordas

Há palavras e palavras.
Há as que nos sossegam, as que nos exaltam, as que nos inspiram, há também as que respiram baixinho
- Já dormes?
Há palavras para todos os gostos e estados de alma. Até aqui nada de novo. Aliás, para mim, até hoje, nada de novo.
Procurava eu a definição de paladim num dicionário on-line quando, segundos depois de pressionar a tecla "enter", surge a seco no ecrã:

s.m.
o mesmo que paladino 

A rapidez da internet compreende-se, uma vez que não havia grande coisa para descarregar: duas letras, dois pontos finais e quatro palavras; uma a negrito e sublinhada - gorda de si mesma, com link directo para ela própria, enquanto a outra cujo significado é igual ao da gorda, continuava pendurada e infeliz, no topo da página branca, quase vazia, onde se banhava a gorda à vontade, fazendo-se acompanhar apenas dos respectivos cicerones que sempre tratam de anunciar personalidades importantes.
Não me debruçando sequer sobre o tema, porque é que paladim há-de ser o ovo e paladino a galinha, ou paladino o ovo e paladim a galinha - por mim estrelava-os aos dois - o que me surpreende é que, uma vez mais, a actualidade não soube adaptar-se à actualidade. Ou seja, nos tempos dos dicionários em papel, fazia sentido que estas remissões existissem, numa perspectiva de economia de recursos, ou simplesmente para evitar que a avó matasse o avô, arremessando-lhe o vellho Lello à cabeça. Nos tempos que correm, ninguém assassina ninguém com Bytes - não arremessando-os, pelo menos - por isso me custa compreender este anacronismo - palavra que, com um bocadinho de sorte, também há-de ser o mesmo que outra gorda qualquer a banhar-se no vazio.
Estas reflexões geniais acontecem-me geralmente durante o breve momento diário que dedico a cuidar da pele do rosto, e nada mais me ocupa a cabeça para além de "o creme de olhos aplica-se sempre no sentido da sobrancelha". Uma gorda está lá sempre, a olhar-me a partir do espelho, inquiridora. Eu não faço ideia qual o sentido da sobrancelha, mas sei a regra, sempre no sentido da sobrancelha, e isso devia contar para alguma coisa. Aliás, para não errar completamente, alterno gestos hesitantes em ambos os sentidos, e assim estou certa de acertar em, pelo menos, metade dos movimentos circulares. Mas não, a gorda é muito gorda, obesa mesmo, e quer mais, muito mais, quer tudo; quer que eu saiba a regra e que a saiba aplicar.
- Algumas pessoas são melhores com a práctica e menos boas com a teoria. - Murmura uma voz sumida - Já dormes?
Ou
- Algumas pessoas são melhores com a práctica e piores com a teoria. - Murmura uma voz sumida - Não dormes nada... Vá lá...
(Ou vice-versa em relação às habilidades teóricas e prácticas, que não consigo escrever tudo outra vez mas ao contrário, com esta gorda a olhar para mim.)
Hoje, para acalmar a gorda, disse-lhe baixinho com os lábios junto ao espelho
- Sossega, sou o mesmo que tu, vai lá buscar os cicerones e deixa-me em paz que eu tenho mais que fazer.  

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

...

Devolvo-te intacto o bem e o mal.
O bem que fizeste e o mal que nunca soubeste.
- Alto lá!
Parei-os à porta.
Não entraram.
Não lhes toquei.
Nem perdi,
nem ganhei.
Bem vistas as coisas, nem sequer gostei.

Devolvo-te intacto o amor que disseste, ser o nada que pudeste.
Segue inteiro,
sem selo, nem morada.
Sem destinatário ou hora marcada.
Há-de chegar.
Assim o leve o carteiro que desconhece, o peso que arrasta na calçada.
- Bom dia D. Otília.
- Como vai Sr. Manel?
- Com licença, meu senhores, vai andar o carrocel!

Devolvo-te intacto o bem e o mal.
sem princípio,
nem fim,
nem meio.
Segue tal como veio,
tudo de empreitada,
Segue tudo,
e afinal não segue nada.