terça-feira, 18 de junho de 2013

...

Hoje não quero mudanças.
Quero tudo como está, onde conheço que fica.
Quero coisas pesadas, de ferro ou de outras.
A mesa junto à janela aberta
A tesoura sobre a mesa
                                   debaixo da cartolina vermelha
Quatro caixas de lápis sem cor, uma em cada canto
                                   para que não lhe mexa o vento,
                                   na cartolina.
Quatro vezes trinta e seis cores de lápis, todas à janela
                                   para que as leve o vento
                                   ou o tempo.
Hoje quero coisas quietas do peso de mim.
Quero a tesoura onde a encontre
numa ordem pesada
numa leveza soprada
só lá mais para o fim.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

E o ouro vai para...

Sobrava-lhe tudo.
Satisfeita, um pouco feliz, estendeu o corpo no sofá. 
Quase todos os músculos relaxados, à excepção do braço esquerdo hirto, a amparar a cerveja pousada na barriga para que não se entornasse
A mãe costumava dizer-lhe que o cérebro também é um músculo, Há que treiná-lo se o queremos em forma. O cérebro é de facto um músculo. Soube-o com certeza no momento em que lhe saltou da cabeça a ideia de que, se lhe sobrava tudo, só podia ser por não lhe faltar nada. Só pode ter sido o cérebro a atirar aquela ideia cá para fora, ainda dentro da cabeça. O fora e o dentro é uma questão muito confusa pelo que prefiro não me alongar sobre essa matéria. Fique-se com a ideia de que não lhe saltou nada da cabeça para fora. Saltou-lhe apenas uma ideia de dentro para um dentro que é um bocadinho fora de algum lado, para que a rapariga pudesse sabê-la. Só pode ter sido o cérebro a tratar desse assunto, uma vez que todos os músculos estavam relaxados, e o que não estava, tratava de conservar a cerveja dentro da garrafa, que para um braço, ainda para mais o esquerdo, é tarefa mais do que suficiente para absorver a atenção por completo.
Está bom de se ver que a rapariga era dextra. E ainda bem. Se assim não fosse, se a rapariga fosse canhota, surgiriam dúvidas. Uma mão inábil não pode segurar uma coisa na vertical e acumular a responsabilidade de atirar cá para fora, que ainda para mais é um bocadinho dentro, uma coisa tão importante como uma ideia.
Aquela ideia não era boa, mas era importante. Duas características accionadas pelo mesmo motor: o desassossego. A ideia não era boa porque lhe roubara o sossego, e a ideia era importante porque lhe roubara o sossego.
Depois de provada a resposabilidade do cérebro no que respeita ao arremesso de ideias de dentro para dentro, e a sabedoria da mãe, restava-lhe o motor para a atormentar.
Desassossegada, saltavam-lhe ideias da cabeça para fora. Para fora mesmo, desta vez. Daquelas que se podem ler nos corpos agitados. A camisola até aos joelhos a tapar agora pouco mais do que a linha do umbigo, a cerveja entornada no tapete de um século antigo, e as ideias, atléticas, cada vez mais longe, cada vez mais improváveis na medida alcançada. Porém, nenhuma que desse o menor sentido à incoerência,
Sobrava-lhe tudo mas nem por isso não lhe faltava nada. 
Sobravam-lhe coisas que não sabia onde pôr, talvez num caderno, ou num silêncio - mas os silêncios dos próximos três meses já todos ocupados por coisas sem lugar -, e coisa nenhuma dentro dela. Só o vazio onde pairar uma ou outra ideia perdida, que o cérebro não chegou a conseguir atirar cá para fora, por apanhar a rapariga distraída.
A rapariga raramente se conseguia distrair naturalmente, por isso lhe custou tanto ver o tapete estragado, tão distraído, o sortudo. Mas o cérebro é um atleta olímpico, e para chegar a esse nível só com muita persistência. Mais cerveja menos cerveja, mais dia menos dia, acaba sempre por conseguir o que quer: milhares de ideias espalhadas por todo o lado e finalmente uma capaz de acalmar a rapariga sem roupa, nem tapete, nem cerveja. Uma marca memorável. Longe, longe. Quase nem era uma ideia de tão remota.

Ainda assim, jogo é jogo, por isso: medalha de ouro para a rapariga, o lugar mais alto do pódio só para si, e uma bandeira escura - qual vermelha, qual verde, qual armilar, ou amarela, qualquer coisa com "a" "m" e "r". Escura. -, içada no alto e vaiada por todos.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Isto não é para mim

          Perdoem-me mas definitivamente não nasci para isto.
          Para a vida, quero eu dizer.
          Agradeço do fundo do coração a oportunidade que me foi dada,
(prefiro falar na terceira pessoa, porque se me ponho a falar na primeira e na segunda, este texto acaba aqui mesmo. Não se pode não nascer para uma coisa que nos foi dada pelo pai e pela mãe.)
a sério que agradeço. Esta coisa do esqueleto, dos músculos e da gordura, dos aparelhinhos a bombar sangue e oxigénio para todo o lado, deve ter dado um trabalho do caraças. Acreditem que agradeço e, tendo em conta o vosso empenho e dedicação, até me esforcei, mas,definitivamente,
isto da vida não é para mim.
           Talvez tenha fracassado. Está bem, admito, fracassei, ou fraquejei, seja o que for, mas as pessoas fazem isso a toda a hora e não vem daí mal de maior ao mundo. Não se hão-de desalinhar os planetas apenas porque uma pessoa, que me calhou a mim ser eu, admitir, honestamente, que
isto da vida não é para mim.
           Ainda no outro dia o Carlos disse ao chefe que afinal aquilo de Inspector Geral não era para ele, e o mundo não descarrilou. Bem pelo contrário, emergiram de imediato variadíssimas forças vigorosas, de trás de variadíssimas secretárias bafientas, que passaram a tratar o Chefe nas palminhas e às palmadinhas, enquanto o novo Inspector Geral não foi nomeado. O Chefe ficou um bocadinho desapontado com o Carlos, é certo. E o Carlos ficou vagamente desapontado com o Carlos, é certo. Mas foi coisa que passou rápido. Velocidade essa que não teria sucedido caso ninguém se tivesse desapontado.
          E é por isto da velocidade e do desapontamento que digo, enquanto é tempo,
          Perdoem-me,
mas isto da vida não é para mim.
          Não digo que seja só defeitos, nem por sombras, já não tenho idade para intransigências. Tem coisas engraçadas, boas até, mas quando o turbilhão de néons diários se apaga, e se acende a escuridão da noite, quando as mãos buscam, trémulas, e não encontram nada, nem outra, quando o frio na barriga gela de perguntas, aí é que tudo faz sentido.
          Mas o sentido desistiu há muito, meus caros. Gritou para quem o quis ouvir que isto não era para ele, e ninguém se ralou. Por isso agora sou eu que digo,
perdoem-me mas isto da vida não é para mim.
          E não admito que se indignem, não vou sequer tolerar que o frio vos gele na barriga, ou na minha, de tantas perguntas.
          Mas quais perguntas?
          Na verdade, quais perguntas, rapariga?
          Conta-me cá, se o sentido voltasse, com o rabinho entre as pernas, e te dissesse baixinho,
          - Pergunta à vontade que eu respondo.
          O que é que fazias? Que sumptuosa pergunta terias para lhe fazer, rapariga?
          Nenhuma.
          A treta é essa; nenhuma. Nem uma.
          Tenho de admitir que assim é. Se o sentido voltasse, arrependido, agora mesmo, no preciso momento em que escrevo este queixume medíocre, não teria nada, nadinha, para lhe perguntar. O que me gela na barriga não são perguntas. Se o que me gela na barriga fosse,
- Como se divide afinal o átomo?
- Porque é que chove aqui  e não ali?
- Porque é que os leões hão-de ser carnívoros e não vegetarianos?
- Porque é que o Sol gira à volta da Lua, ou lá o que é? (Está bom de se ver que o que me gela não são perguntas)
estaria rica e seria o maior orgulho da segunda e da terceira pessoa. Porque quem se pergunta compulsivamente seja o que for, acaba por encontrar uma resposta.
          Se não tenho respostas, é porque não me pergunto.
          E assim sendo, o que me gela na barriga é um vazio imenso, é o roncar da vida a moer em seco.
          Por isso, agora que dei o flanco e admiti que isto da vida não é para mim, alguém pode perguntar ao sentido como é que o vazio chega a gelar?