quinta-feira, 28 de março de 2013

Bacteriano, ano, ano...

Abaixo os caucasianos os negros e os marcianos
Abaixo os hispanos e os açorianos
Abaixo os humanos
Promíscuos ou puritanos
sensatos ou levianos
Abaixo fulano e sicrano 
Decapite-se beltrano.

Abaixo o pensamento freudiano
o idealismo kantiano
o estilo camoniano
Descarte-se o cartesiano
qualquer raciocínio humano
melhor ainda
descarte-se tudo quanto é humano
até o Ser
Não há questão
É tudo um engano
Um engano
gano
gano...
Um engano galopante
Bacteriano
ano
ano...

Abaixo o engano e o desengano
Não
abaixo apenas o desengano
Abaixo o pobre bichano
mas... mas...
Abaixo tudo, até o pobre bichano!

Abaixo o canto gregoriano
(só o canto)
Abaixo o sagrado 
Abaixo o profano
Abaixo o feixe hertziano
Abaixo o Polo Norte
e o Sul
Expluda-se o Meridiano
e de caminho
o comboio interurbano.

Aparem-se as pernas ao gigante
ofereça-se um banco ao  liliputiano
Ponha-se tudo mediano
Mediano
ano
ano...
Engano
Pequeno, grande, mediano
tudo um engano
bacteriano
o quotidiano
ano
ano
ano...

Ressuscite-se Fleming
ou então
Desça-se o pano, desça-se o pano.
Risque-se um fósforo
e ligue-se o gás butano.


sábado, 23 de março de 2013

Soi-vivant

- Voullez-vous, Monsieur Camus, épouser Mademoiselle Cunha?

Ele, por estar, soi-disant, morto, não respondeu.
Eu, por estar, soi-disant, viva, disse sim.
Permiti-me a ousadia por estar quase certa de que, se estivesse, soi-disant, vivo, diria o mesmo que o Estrangeiro disse a Marie:  que não lhe fazia diferença e que poderíamos fazê-lo se eu quisesse.

Casámos e, soi-disant, vivemos, soi-disant, felizes para sempre.


domingo, 17 de março de 2013

Domingo

Uma pessoa sabe que é domingo quando
Uma pessoa sabe que é domingo quando
(Quando a Graça leva o cão a passear às dez e não às sete?)
Uma pessoa sabe que é domingo quando a Graça leva o cão a passear às dez e não às sete.
Que dia é?
Que horas são?
Uma pessoa sabe que é domingo quando
Uma pessoa sabe que é domingo quando
(Quando o teu pé levezinho no meu levezinho às dez e não às sete?)
Uma pessoa sabe que é domingo quando o teu pé levezinho no meu levezinho às dez e não às sete.
Que dia és?
Que horas tens?
Quantas gramas* o teu pé?
Pouquinhas.
Uma pessoa sabe que é domingo
Uma pessoa sabe que é domingo
Ah foda-se, uma pessoa só sabe que foi domingo quando já é segunda.
Ou
Ah foda-se, uma pessoa sabe que é domingo quando ontem foi sábado
e o cão da Graça já morreu ó pé de chumbo.

* Relembrou-me um amigo, e bem, que grama é masculino. Vá-se lá saber porquê, este é um erro meu recorrente. Mesmo sabendo que é homem, grama sai-me sempre mulher. Obrigada, Carlos, corrige-me sempre sem constrangimentos.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Cancelamento

Decidi hoje, agora.
Vou parar de respirar.
Sem circos nem foguetões
cordas, quedas, camiões
comprimidos empapados
em álcool,
desgraçados.
Não quero cá depressões
nem tão pouco embriões
de aflições.
Vou limitar-me a parar,
de respirar.
Sente-se a senhora do canto
o senhor aqui da frente
e sente-se o menino também.
Prendam os cãezinhos na trela,
e já agora,
alguém segure a minha mãe.
Perdoem-me se compraram bilhete
o espectáculo prometia, bem sei.
Mas não estou pra confusões,
desordens ou multidões.
Assobiem se quiserem
estão no vosso direito, senhores.
Ainda assim,
já não vai haver quem ria
nem chore.
Já não vai haver magia
ou folclore.
Gritem bravo se entenderem
não é caso para menos, senhores.
Porque assim,
já não vai haver quem via
as cores
com eu as sabia
todas pretas, de cor.

quinta-feira, 7 de março de 2013

...

Era todo ele redondinho.
Visto ao longe
perfeito
pequenino, pequenino.
Parecia um berlinde malhado
de uma só cor
um azul meio encarnado.
Mergulhei a pique.
Quis enfiá-lo no bolso.
Era afinal um colosso
nem direitinho nem azulado.
O mundo ao perto
não me cabe no peito
não assim de uma só cor
branco escuro
imperfeito.

segunda-feira, 4 de março de 2013

A ferida

Tinha uma ferida
que só ela sabia
existia.
Lá dentro
como doía
a ferida
vazia.
De tanto que doía
crescia, crescia, crescia.
Assim tão grande
jamais podia
ser apenas o nada
que ele lhe dizia
se via.
Cresceu tanto a ferida
que às tantas
já não lhe servia.
Quase nem doía.

sábado, 2 de março de 2013

Tudo é amor (remasterizado)

Estou zangada com o Mundo, e acho que é recíproco.
Tenho razões de sobra para acreditar, que também ele está zangado comigo.
Não o culpo.
Na realidade sempre preferi a Lua.
O Mundo, ciumento, ressentiu-se, claro.

Posso pedir-te desculpa por gostar mais da Lua, mas não posso deixar de gostar mais da Lua, entendes?
Posso dar-te tudo aquilo que está ao meu alcance, mas não te posso dar aquilo que não me pertence.
E isso, é dar-te Tudo, compreendes?

Espero que me ames de volta, mesmo dando-me apenas tudo aquilo que tens para me dar. E que aproveito para te dizer, caro Mundo, andas a distribuir mal os presentes.

Ainda assim, se é tudo, agradeço-te.

Entretanto, 
enquanto espero que o teu tudo cresça,
vou continuando a preferir a Lua, e a dar-me eu tudo a mim.
Porque esse tudo, é o único que posso fazer crescer.
No fim da linha, esse meu tudo que tenho para me dar, é o único em que posso confiar.

E mesmo sabendo que fazer um tudo TUDO
(ainda que tratando-se do tudo de mim para mim)
é difícil,
esse, pelo menos, eu posso engordar.
Os outros, dependem, lá está, dos outros.
E os outros, têm outros tudos para alimentar.

Por isso, por amor de Deus, pára de te queixar!
Estou despida, não vês? Vazia, não sobrou nada...
Nem uma tanguinha para me tapar as vergonhas.
Está um frio do caraças e dei-te tudo o que tinha.
E dar-te Tudo, é amor.

Por isso, cala-te e aguenta-te com esta:
Amo-te, mas gosto mais da Lua.

sexta-feira, 1 de março de 2013

A dúvida

Não sei se é talento ou desalento
esta coisa que me sobra cá dentro.
Na dúvida, não me sento.
Porque se me sento, rebento.

Não faço ideia se é uma coisa ou outra
mas mais do que o medo do desalento,
ou o pavor do talento,
o que me consome é a dúvida,
cá dentro.
E eu deixo.

Deixo porque enquanto me consome a dúvida
não me destrói o talento,
ou o desalento.
- Ai como dói o desalento de uma tão grande falta de talento.
Ou
- Ai como dói este enorme talento, para o desalento.

É isso.
Bom, talvez seja isso, não sei.
E reparem que não perguntei.
Afirmei.
Não sei se é talento ou desalento.
Ponto final.

Enquanto a dúvida permanece, não é uma coisa nem outra.
E é na dúvida eterna que encontro o meu sustento.
Mas a dúvida só cresce se a alimento...
Por isso reparem na dúvida que afirmei:
não sei se é talento ou desalento.

- As dúvidas não se afirmam, perguntam-se.
Diz logo alguém.
(Há sempre quem responda ao que não se perguntou)

Mas será que falo para ninguém?
Diz-me, eu perguntei? 
Não perguntei.
Afirmei.
Não sei se é talento ou desalento.

Na dúvida nem tento.
Com sorte não é uma coisa nem outra
é apenas isso mesmo,
uma crosta que cresce cá dentro.

E quem foi que a deixou aqui
bem ao centro?
Quem foi que a deixou neste lugar maldito
onde as feridas se alimentam
imagine-se,
a fermento.

Eu não fui com certeza.
Eu que nem me aguento,

Aguento, aguento...
Claro que aguento.
Vou aguentando o tempo.
Até o alimento.
Porque sei que esta crosta, este cinzento
há-de finar-se comigo cá dentro.
E sem sustento,
sem a dúvida que me dá alento
aí sim,
juro que não aguento.