segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

As borboletas da Joaninha

A joaninha fez um desenho que se chama "a mãe, a tia e as borboletas".
Eu sou a tia, mas com este desenho fiquei a sentir-me a borboleta.
Gosto de ser borboleta, especialmente se essa borboleta for da Joaninha.
Se calhar gosto mesmo é da Joaninha.
Aos cinco anos a joaninha ainda dá beijinhos cheios de baba, mas quando lhe perguntam
- Com essa baba toda, joaninha?
não tem vergonha de limpar desajeitadamente a boca à manga da camisa.
A Joaninha é como um esparguete de aletria, mais magrinho e mais doce do que o esparguete normal. Mas mesmo quando é especial, o esparguete é difícil de abraçar convenientemente, de tão magrinho e escorregadio.
Há dias fui à festa de anos da Joaninha e ela foi receber-me à porta, com uma saia cinzenta curtinha, pendurada ao pescoço por um daqueles peitilhos que mais parecem as costas de uma cadeira. Quis acreditar que teve o cuidado de vestir uma saia curtinha, para que se vissem bem os sapatos de salto alto, forrados a lantejoulas cor-de-rosa, que a tia borboleta lhe ofereceu no Natal, e comoveu-me que tivesse pendurado a saia ao pescoço com as costas de uma cadeira
(não acredito que seja confortável)
para que não houvesse a menor hipótese de num momento de brincadeira distraída, a saia tapar os sapatos.
Assim a encontrei à porta, com uma saia exageradamente curta a deixar ver a cicatriz em U dos collants que em tempos serviu para acomodar a fralda, uma cadeira pendurada ao pescoço, os pés às dez para as duas (dolorosamente) enfiados nos sapatos de princesa de acabamentos duvidosos, e claro, a manga da camisa pronta a limpar o excesso de baba, antes do beijinho da praxe.
- Hoje pode ser mesmo com essa baba toda, Joaninha.
Gosto de tudo na Joaninha, mas o que me deixa mesmo com o coração apertado é o sorriso.
A Joaninha ri-se com os dentes todos fora da boca, como se os mostrasse para inspecção materna antes de deitar
- Que bem lavadinhos estão, Joaninha. Estás uma crescida.
Eu acho que a Joaninha tem  medo que duvidem que está a rir, por isso usa todas as suas armas (dentes, neste caso) sem excepção. Tem até o cuidado de fechar os olhos num franzido de chinesinha, para que a alma dos olhos não interfira com a árdua tarefa de rir sem margem para dúvidas.Desconfio ainda, que o excesso de baba serve para chamar a atenção do sorriso e topo-lhe o esforço malandro dos olhos, a borboletearem apertadinhos, entregues ao compromisso partilhado entre não se mostrarem, e conseguirem ver a reacção alheia.
Será que riem as borboletas?
No desenho dela, rio.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Amor gramatical

Não sei muito bem porquê, mas gosto sempre mais de usar os adjectivos depois dos substantivos.
Ou não.
Ou depende.
Depende, acho.
Sei que gosto da ideia de
uma coisa linda ser mais linda, que uma linda coisa.
(Está certa aquela vírgula ali, Pedro?)
Prefiro quando se referem a mim dizendo com uma ar ternurento
- Que coisa linda.
Desconfio porém, que não raras vezes o pensamento é mais
- Que linda coisa...
As coisas têm de facto uma relação conflituosa com os adjectivos. Se calhar amam-se e depois dá nisto.
Todas as coisas preferem ser "coisas grandes", a "grandes coisas". Uma "grande coisa...", especialmente se proferida com ar de desdém e reticências (é possível proferir reticências?), é na realidade uma coisa pequena.
Há dias em que a versatilidade me cansa.
Tempos houve em que me aborreceram os Legos. Ficava sempre um bocadinho ansiosa, quando me davam uma caixa de Lego com meia dúzia de peças que devidamente conjugadas, podiam construir trinta e nove carros diferentes. Que desgaste meu Deus!
Para o bem do descanso de muitos (acreditando que há por aí mais gente cansada da versatilidade das coisas) sugeria que os adjectivos beijassem de uma vez por todas as coisas na boca, e que em regime de excepção, não deixassem as coisas passar à frente nas portas.
Assim, teríamos sempre coisas lindas e coisas grandes.
É possível que se verifiquem momentos de amuo por parte das coisas, de cada vez que os adjectivos pouco cavalheiros lhes passarem à frente. Não desanimem meus senhores, não deverá ser nada que mais um beijo doce não resolva.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Afiadela nº 33

Passar o ano é uma afiadela de lápis.
A cada ano, o cinzeiro mais cheio de aparas
e o lápis cada vez mais curtinho.
Não é possível escrever com aparas, é certo.
Mas só é possível escrever com o lápis afiado.

Bom Ano