terça-feira, 28 de setembro de 2010

(este post não tem título)

E uma vez mais, nada.
E uma vez mais, procurei no sítio errado.
E uma vez mais, procurei tudo.
E uma vez mais, não encontrei nada.
E uma vez mais apagaram as luzes todas.
E uma vez mais, não quero nada.
E nunca mais.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Coisinhas que eram

O supermercado da D. Isilda não resistiu aos hipermercados e morreu, como todos os seus colegas de carteira. Sobram alguns, quase nenhum nas grandes cidades. Hoje não vou desenrolar o novelo nostálgico. Morreu de velho e pronto. É assim que as coisas acontecem.
Enquanto viveu, o supermercado da D. Isilda morava na porta ao lado do meu colégio e era paragem diária obrigatória da minha mãe no nosso regresso a casa. A D. Isilda, como jeitosa para o negócio que era, percebeu desde cedo que valia a pena investir em mim. Havia ali potencial consumista e chantagista. Tratava-me nas palminhas, subornava-me com rebuçados de qualidade duvidosa que me deixavam a língua tingida de cores baratas e as bochechas estrelhaçadas, em troca de alguma pressão manipuladora junto de quem tinha o dinheiro: a mãe. A D. Isilda era esperta e soube ver que eu faria aquilo muito bem. Não se enganou. Assim que me via ao longe na rua, rasgava um sorriso largo de cifrões nos olhos. Toda ela era luz. Trocávamos olhares cúmplices, piscadelas de olho marotas, e a D. Isilda movia a boca freneticamente a dizer coisas sem som, de cada vez que a minha mãe virava costas. Eu acenava que sim com a cabeça mas raramente entendia as ordens. Suponho que fossem palavras encorajadoras a confirmar a aliança,
- Vá lá, já sabes como é. Tenho aqui rebuçadinhos novos.
(piscadela de olho)
Eu, fiel, sempre que a D.Isilda dizia qualquer coisa como,
- Tenho aqui uns pesseguinhos lindos para a menina.
acenava com a cabeça que sim e punha uma cara angelical a insinuar
- Morro se não comer pesseguinhos. ESTES pesseguinhos.
No supermercado da D. Isilda não havia coisas, havia coisinhas, principalmente quando se tratava de coisas para a menina:
pesseguinhos, 
perinhas, 
batatinhas, 
nabicinhas... 
Tudo fresquinho.
Infelizmente nunca eram coisinhas boas como bolachinhas de chocolate, ou bolinhos com creme, ou pastilhinhas. Eram sempre frutinhas ou outras coisinhas chatas (chatinhas neste caso) com que se fazem sopas. Apesar de naquela idade nada do que serve para fazer sopa ter qualquer relevância, eu declarava desejo incontrolável pelas tais coisinhas que a D.Isilda propunha para a menina, em troca de línguas tingidas e bochechas estrelhaçadas.
Um dia, num daqueles meus momentos de paixão arrebatada, disparatada e irreversível, declarei:
- Mãe, quero aqueles rebuçados gigantes. Pode ser?
Os rebuçados gigantes eram nada menos que pastilhas de detergente para sanita, magnificamente embrulhados em papel celofane das mais variadas cores e dispostos na prateleira de forma absolutamente apetitosa.
- Aquilo não são rebuçados, são pastilhas de detergente para a sanita.
Pensei um momento. Pesei os prós e os contras (mal claro está), conclui que uma dor de barriga não era nada comparada com a posse de tão maravilhoso e hipotético rebuçado e rematei,
- Não faz mal  mãe, eu gosto daqueles rebuçados mesmo assim.
- Mesmo assim como, se aquilo não são rebuçados?
- Mesmo assim como eles são.
- AC, NÃO SÃO rebuçados! São pastilhas desinfectantes para a sanita.
- Pode ser mãe. Pode ser mesmo essas pastilhas para a sanita que parecem rebuçados.
- AC, se comeres aquilo vais ficar mal da barriga. Aquilo não é para comer.
- Mas eu gosto.
Quando se me acabavam os argumentos, entrava em modo de "mas eu gosto". Não é possível refutar um "mas eu gosto". Ou melhor, até é, mas dá imenso trabalho a pais esgotados por uma dia de trabalho rotineiro e as criancinhas apercebem-se rapidamente disso. Apesar do cansaço materno, dali vinha sempre uma longa e aborrecida conversa sobre como não é possível gostar-se de uma coisa que não se conhece, que nunca se provou, como é preciso ser-se racional às vezes e tudo mais que as mães tentam ensinar às crias e que na maioria dos casos fica algures arquivado no cérebro, chegando apenas a surtir efeito na idade adulta. 
(Deve ser necessária muita perseverança e capacidade de acreditar para se ser mãe. Há-de lá ficar qualquer coisa, é preciso acreditar. A verdade é que fica e a prova disso é que eu não ando por aí a devorar pastilhas de w.c. pato)
Fazendo uso da minha valiosa aliança com a D. Isilda, pisquei-lhe o olho  como quem diz:
- Se queres que te continue a ajudar a vender frutinha e coisinhas para a sopa, é bom que me dês uma ajudinha aqui. 
Ela entendeu a cobrança e disparou
- Então mas se a menina quer, compre-lhe e não a deixe comer, ou deixe-a provar para desencrençar.
O que a D.Isilda não sabia é que eu comeria as pastilhas de sanita de qualquer jeito. Aquilo para mim eram rebuçados e não havia volta a dar. Felizmente a minha mãe conhecia-me bem demais e adivinhou perigosa a compra. Poupámos uma noite no hospital mas a minha aliança com a D. Isilda nunca mais foi a mesma. Nem a aliança, nem a capacidade de amar incondicionalmente.
É ou não é grande esta capacidade de amar cegamente, de amar um rebuçado que afinal é uma pastilha desinfectante para sanita?
É, não.
Era.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Rui de papel

"E se eu gostasse muito de morrer" não me larga o corpo.
Adoro títulos.
Leio muito menos do que devia. Ou melhor, leio muito menos do que queria. 
(Devia agora! Queria agora! Leio o que quero, que é o que devo. Seja como for, a verdade é que leio pouco) 
Muito do pouco que leio, são títulos. O que quer dizer que à minha maneira, leio os livros.
Como preguiçosa encartada que sou, encontrei uma forma de ler que não me dá cabo da vista.
(Ao fim de tantos anos, continua a surpreender-me a mestria com que invento desculpas credíveis para a minha inércia)
Se um livro é feito a dois, sinto que cumpro pelo menos parte da minha parte, quando um título me anda a contar histórias durante dias.
"E se eu gostasse muito de morrer"
Não é o título premiado, bem sei, mas é o que se agarrou a mim. Que fazer? Agora é deixá-lo fazer o seu trabalho.
Evito entrevistas com o autor, artigos sobre o prémio, críticas, elogios, interrompo vídeos a meio porque não quero saber mais. Não quero estragar o trabalho ao título. Não quero nada que se assemelhe com a realidade. Tenho a minha história e serve-me por agora. Um dia vou lê-lo, este e o premiado também. Por agora prefiro demorar-me a olhar a foto. Imagino o homem para lá do papel e dou comigo a pensar,
e se ele gostasse muito de morrer?
Era uma merda Rui de papel. Quanto ao outro não sei, ao de papel dir-lhe-ia, com a voz tremida e os olhos bem abertos a segurar as lágrimas,
- Pode morrer depois?
- Depois de?
- Sei lá. Depois.
E se isto não chegasse para lhe chantagear a vontade, virava tudo ao contrário e perguntava-lhe,
- E se gostássemos todos muito de morrer?
Entendes agora?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Linda rima com ainda

Sou uma coisa linda que não se vê.
Sou uma coisa linda que não se vê,
ainda.
Se não se vê é porque não sou.
Se não se vê,
ainda,
é porque não sou,
ainda.
Se sou uma coisa linda que não se vê,
ainda,
é porque não sou nada, mas quando for,
vou ser ainda muito mais,
linda.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Aconteceu aqui

É raro ir ao Centro de Saúde. No outro dia, não tive como evitar a visita.
Arrastei-me em braços próprios rua acima e lá fui eu a exibir as canadianas vermelhas pelo caminho.
(As canadianas devem ser contemporâneas do grená. Vai-se a ver e ainda são primos, ou assim)
O Centro de Saúde acontece sem se saber muito bem como, num prédio de habitação. E uso "acontece" no seu sentido mais primário. Aconteceu ali por mera casualidade. Nada naquele Centro de saúde parece obedecer a outra lógica que não a do acaso. Bom, se calhar estou a ser injusta, a localização talvez não seja coincidência. Vislumbro um laivo ténue de intencionalidade no facto do Centro de Saúde de Campo de Ourique, se situar em Campo de Ourique. Aconteceu-nos aquele centro de saúde, mas vá lá, aconteceu no bairro dos utentes, Campo de Ourique. Menos mal
Independentemente da minha observação muito pouco original sobre o nosso Serviço Nacional de Saúde, que também esse nos acontece (estou a gostar disto do verbo acontecer. Incrível como uma palavrinha tão aborrecida pode ser afinal tão cheia de coisas), a verdade é que esta minha visita ao Centro de Saúde, superou em muito o mero queixume sobre listas de espera gigantes, médicos que semeiam pinças nas barrigas dos doentes ou administrativas de cabelo louro com raízes pretas, a mandar naquele bocadinho de território tão fértil, que medeia entre o balcão e a cadeira coxa onde depositam o rabo todas as manhãs, geralmente com quarenta e cinco minutos de atraso.
Este cenário dantesco eu já esperava, o que me surpreendeu foi o outro.
Entrei no prédio de habitação e esforcei-me por acreditar que estava no sítio certo. Tirei uma senha, não sem antes interromper o sudoku do segurança para confirmar que aquela era a senha certa. É preciso ter muito cuidado em sítios destes, um erro é geralmente fatal. Ninguém perdoa. Tiraste a senha errada, agora aguentas-te mais uma meia-horita à espera da tua verdadeira vez, ó espertinha. Nestas circunstâncias opto pela minha versão burra-não-pensante, vagamente aparentada do grilo-falante e não presumo nada, nem o mais óbvio. Pergunto tudo. TUDO!
Confirmada a senha certa. Esperei. Algum (muito) tempo depois,
dlim-dlom... Senha 49, balcão 3.
Agarrei-me à mala e às canadianas (reparem que são três coisas para apenas duas mãos), tentei organizar-me rapidamente e quando arranco o primeiro salto à vara,
dlim-dlom... Senha 50, balcão 3.
Corri à vara (varas neste caso) o mais que pude aqueles longíquos três ou quatro metros até ao balcão e consideirei-me uma sortuda por ter sido atendida, apesar da simpática senhora não ter conseguido evitar um esgar moralista acompanhado de,
- Já tinha chamado o seu número.
E eu e com um ar agradecido e compreensivo,
- Pois...
A custo deu-me um papel gigante para a mão, com meia dúzia de letras a desperdiçar uma imensidão branca, e lá fui eu ao terceiro andar, entregar uma árvore A4 gratuitamente morta, a um balcão vazio. Coxeei um pouco à volta do balcão, em saltinhos curtos já com as canadianas penduradas no antebraço, a farejar a possibilidade da senhora daquele balcão ter ido à casa-de-banho. Afinal é mesmo assim, esclareceu-me a senhora da limpeza, naquele balcão não mora ninguém. É só deixar a árvore morta em cima do balcão que alguém lhe há-de vir fazer o enterro no fim do expediente.
Apesar de tudo aquilo me parecer suspeito, obedeci e sentei-me à espera.
Duas senhoras enchiam a sala de espera com uma conversa cantada em crioulo e lembrei-me dos meus pais que depois de reformados deram em gaiteiros ainda não velhos e foram viver para Cabo Verde. A senhora da limpeza, velha e franzina, arrastava um esfregona pesada e gorda para cá e para lá num chão sem remédio. Vi-lhe as cordas nas mãos, cheinhas de sangue, a ameaçar explodir a cada lambuzadela. Que desgraça seria, pensei, tudo sujo outra vez. Felizmente não houve tragédia, para além da que se passava na televisão onde o Fernando Mendes gritava preços certos.
No meio de tantos estímulos barulhentos, detectei um outro que se impunha perigosamente pelo silêncio. Ao fundo, piscavam ordens num placar luminoso, rectangular, discreto, com letras construídas por pontinhos vermelhos,
"Seja tolerante"
Plim
"Mantenha o silêncio"
Plim
"Beba água"
Plim
"Please don't drink and drive"
E de quando em vez, entre ordens, rebentava uma bombinha desenhada também a pontinhos vermelhos, como quem diz: BUM! Estamos a brincar, pode fazer o que quiser que não o levamos para a salinha das experiências científicas. E logo de seguida novamente o tom ameaçador (na verdade não era bem ameaçador, era mais surreal)
"Seja tolerante"
Plim
"Mantenha o silêncio"
Plim
"Beba água"
Plim
"Please don't drink and drive"
Qualquer uma destas ordens individualmente, seria vista naturalmente como um conselho. A conjugação de todas num único placar e num único Centro de Saúde é que atira tudo para o mundo de Dalí.
Seja tolerante? Beba água? Assim de chofre? Sem mais nem menos?
Por momentos senti que havia alguém por trás de um vidro espelhado a observar o comportamento humano, neste caso desempenhado por uma coxa de canadianas vermelhas, duas cabo-verdianas tagarelas e uma velha de cordas nas mãos. Seja tolerante, escrito num placar luminoso, é coisa de admirável mundo novo, que pressupõe tensão e conflito eminente entre indivíduos da mesma espécie. E lá estou eu a imaginar-me numa carneirada de seres humanos, todos vestidos com bata de bloco operatório, a ser levada por uma passadeira rolante, para uma sala muito branca (não há coisas mais ou menos brancas. Branco é branco).
Sem querer parecer paranóica, a verdade é que fiquei com medo e não quero lá voltar. Se calhar sou uma daquelas "alfa" que devia obedecer a ordens sem questionar e um erro de programação qualquer deixou-me perigosamente inteligente. Se a ordem seja tolerante está lá, é para ser cumprida e questioná-la não faz bem à saúde de uma "alfa". Também aqui é caso para me fazer de burra-não-pensante pelo menos enquanto puder.

sábado, 4 de setembro de 2010

Grená, uma estrela improvável

Em tempos houve duas coisas que desejei secretamente: a máquina de bilhetes do revisor do autocarro e uma pena de pavão.
Secretamente porque nunca me passou pela cabeça que tanto uma como outra fossem acessíveis. Secretamente, porque as julgava irremediavelmente inalcançáveis. Se soubesse que a concretização de um sonho estava ao alcance de um simples pedido...
Sempre me disseram que não se mexe no que não é nosso, e eu que nunca fui cumpridora, cumpri estupidamente esta regra: a máquina do revisor é do revisor e a pena do pavão é do pavão.
Deliciei-me nestes sonhos, isso posso garantir. Apesar do desejo imenso, a aceitação do destino da não concretização fizeram-me saborear cada momento com uma tranquilidade que não me lembro de ter igualado em nenhuma outra altura da vida. Será que foi mesmo assim? Provavelmente estou para aqui a fabricar memórias.
Não sei se sofri com isso e se sofri, não me lembro, por isso para o caso não tem a menor importância. Lembro-me isso sim, do desejo e isso sim, importa e muito. Como é que nunca me passou pela cabeça a frase,
- Mãe, podes pedir ao revisor que me deixe ser eu a tirar o meu bilhete?
Ou
- Pai, podes roubar uma pena ao pavão?
(Deixo a valentia para os homens. A mãe que peça delicadamente ao revisor e o pai que se faça homem e arranque uma pena ao pavão, que entre tantas que arrasta pelo chão, uma a menos não lhe fará falta seguramente)
Nunca pedi. Nunca pensei sequer pedir. Que estupidez. Que frustração gratuita.
No autocarro escolhia sempre um lugar de coxia, por oposição à maioria dos miúdos que se esgadanhavam por um lugar à janela. Dezenas de olhares vazios a mirar o mundo escorregadio lá fora, enquanto resumiam problemas quotidianos no meio do trânsito intenso da hora de ponta. E eu a sonhar lá dentro, indiferente às árvores que corriam para trás. Por várias vezes tive vontade de dar um grito:
- Para onde olham? Está tudo cá dentro.
Corpo apoiado no braço da cadeira, pés a balançar o peso das botas a ritmo cadenciado, cabeça no corredor a espreitar por entre os bancos de napa grená (ainda é uma cor, o grená? Ou foi-se para sempre como a moda das botas ortopédicas?)... e ele ao fundo, a alinhar teclas verdes e vermelhas com o polegar móido, antes de fazer saltar o bilhete num gesto seco de jackpot.
Daquela máquina de chumbo (não sei se era chumbo, nunca lhe toquei, mas parecia chumbo) saiam bilhetes ridículos, pouco dignos de tamanho porte. Assim uns quadradinhos minúsculos de papel branco e gramagem pobre, com letras roxas desbotadas, ao estilo de senha de almoço do liceu.
A máquina do revisor tem história, já o pavão nem tanto. Ou melhor, teve na altura. A história morreu faz anos. Lembro-me da paixão mas sem pormenores e hoje, com o distanciamento adequado, espanta-me que me tenha acontecido. Há lá coisa mais desajeitada que um pavão? Perna curta a segurar o balanço desajeitado daquele corpo de pato, cabecinha de garnisé a fingir delicadeza e às costas, um enorme véu de penas rastejantes e coloridas para enganar as damas. E enganava. A mim enganou-me. No meio deste cenário, quero acreditar que foram as cores que me deram a volta à cabeça. Quanto às cores não tenho nada a dizer sr. pavão. Sim senhor, o que eu gostava de ter tocado naquelas cores.
Hoje em dia, posso fazer isso tudo se me apetecer, mas não me apetece.
Cada coisa no seu lugar. Tenho medo de descobrir que afinal as penas dos pavões não são assim tão coloridas e que as máquinas de chumbo são iguais aos bilhetes miseráveis que dela saem. Por medo deixo-me estar quieta à espera do próximo sonho que vou fazer questão de não concretizar.