terça-feira, 28 de dezembro de 2010

E se as janelas crescessem connosco?

Tenho saudades das janelas altas. Daquelas janelas onde só chegava em bicos de pés, ou em cima do banco pequenino com tampo de corda, suficientemente grande apenas, para caberem dois pés juntinhos a rezar. Em pequena o mundo acontecia-me muito pela janela. Hoje em dia fico pouco em casa, por isso acontece-me menos.
É pena.
Com o tempo as janelas mirraram, e olhar através delas passou a ser óbvio, frequente, comum e até inevitável. Como tudo o que se torna fácil, também olhar pela janela se tornou aborrecido, ou pelo menos, menos interessante.
É pena.
Olhar pela janela já foi de tudo para mim, desde um enorme entusiasmo, à fuga possível entre paredes. Hoje não é quase nada, apenas porque deixei de as ver, ou melhor, deixei de ver o que se passa através delas.
Quando eu era miúda, os meus pais mudaram-se para um subúrbio chato que já não era campo, mas ainda não era cidade. Como qualquer subúrbio recente, também naquele as pessoas ainda não tinham tido tempo de envelhecer, pelo que, vida de bairro era coisa que ali não havia. Em contrapartida, decorriam obras por todo lado, e entre os carros e camiões que por ali se passeavam atarefados, a levar cimento para dentro e lama para fora, havia um que me enchia as medidas e que baptizei de "carro pequenino".
(Que ingenuidade, bem sei)
O carro pequenino, era  um tractor cor-de-laranja, realmente pequenino, apenas com um lugar para o condutor e um enorme (dentro da sua pequenez, claro) depósito para entulho à frente. De cada vez que se avistava aquele brinquedo na rua, tocava a sirene lá em casa
- Olhóóóóóó caaaaaaaaaaarro "paquanino"...
Ninguém se interessava muito por aquele assunto. Às vezes, com sorte, o pai ou a mãe (ou a avó, antes de ficar demasiado fraquinha) agarravam-me pela cintura e ajudavam-me no exercício hercúleo de me pendurar no parapeito, enquanto
- Olhóóóóóó caaaaaaaaaaarro "paquanino"...
Questiono-me frequentemente sobre o motivo daquele entusiasmo todo, e não chego a conclusão nenhuma.
Desta vez não é pena, é só assim.
O coração saltava pela boca e o corpo corria desalmadamente casa fora, à procura da janela onde a cada minuto, o carro "paquanino" cabia melhor. O coração só esmorecia, quando deixavam de existir janelas que o enquadrassem. Nesse momento, soltava as mãos doridas do parapeito, deixava o corpo escorregar parede abaixo até se enrolar num montinho de gente, e desejava ter uma casa de vidro, ou mais dez centímetros, ou sete bancos pequeninos empilhados, ou uma avó fortezinha,
(Nunca desejei ir para a rua atrás dele. Porque será? Se calhar por que sabia impossível o desejo) 
ou um carro "paquanino" só para mim.
(Ter um carro "paquanino" só para mim também era um desejo impossível e ainda assim eu desejava-o.)
(E assim de repente fiquei sem argumento)
(E quem disse que eu queria argumentar?)
Daquelas janelas não se viam só carros "paquaninos".
Daquelas janelas também se conseguia ver, felizmente, a avó a descer a rua com um saco carregado com vinte e oito carcaças, dezanove pãezinhos de lenha, nove vianinhas e ainda um pão-de-deus dos grandes para o lanche. Eu, a adivinhar enervação, corria rapidamente a avisar o pai, para dar tempo que a irritação do exagero gritante lhe passasse, antes da avó chegar feliz com as suas sacadas de trigo. A partir de certa idade deixa de fazer sentido contrariar coisas sem importância, e eu orgulho-me de ter contribuído para que ela morresse feliz, a comprar quilos de pão que ninguém comia, sem nunca se dar conta que aquilo era um tremendo disparate. 
Do carro paquanino, às vinte e oito carcaças da avó, passando pela carrinha do colégio que chegava vezes demais, muita coisa se passou através daquelas janelas, nos tempos em que só lhes chegava de bicos dos pés. Agora que não preciso de me pendurar no parapeito, a vida através das janelas cessou de me interessar. Por isso digo:
- As janelas deviam crescer connosco e deviam existir bancos pequeninos com tampos de corda por todo o lado.

domingo, 26 de dezembro de 2010

El Loco

Numa altura em que me preparo para regressar a Barcelona (que saudades...), lembrei-me deste dia três de Setembro. Aqui fica, sem edições envergonhadas, tal e qual foi escrito há onze anos.

Barcelona, três de Setembro de 1999

Cheguei a Barcelona pela manhã; apressei-me em direcção a um táxi, entrei e disse ao motorista “à la Plaça d’Espanya” . Olhou-me pelo retrovisor com um ar desconfiado. O meu sotaque ridículo denunciou-me de imediato.

Não falámos durante toda a viagem. Paguei e saí.

Subi a Av. Reina Mª Cristina, em direcção ao palácio de Victória Eugénia. Quando cheguei à fonte Montjuic, fui surpreendida por dois caixotes de madeira avermelhada lindíssima. Ao desviar o olhar de um para o outro, deparei-me com o inesperado (não esperava encontrá-lo Já), o pavilhão de Barcelona.

Apressei-me na sua direcção por um descampado de terra batida, onde brincavam uma série de cães vadios. Fiquei com as sandálias todas sujas e os pés também.

Para a próxima vou pelo passeio.

Ao aproximar-me dei-me conta de uma figura magra e esguia, que andava para trás e para a frente entre o volume do pódio e a espessa linha branca da cobertura em levitação. Parecia um leão enjaulado, ou “El loco” de Picasso, só que usava óculos de sol.

Sacudi os pés antes de subir a escadaria de acesso.

Cruzei-me com a figura magra atrás descrita e já de costas ouvi um “Hola” ameaçador. Era ele. Virei-me, aparentemente tranquila e reparei que trazia um cartão de identificação pendurado no bolso dianteiro das calças. Era o porteiro.

Paguei 550 pesetas para entrar, isto para estudantes claro. Malditas autoridades!

Ainda no topo da escadaria confesso que tive uma certa dificuldade em decidir por onde começar. Mirei (porque estava em Espanha) à volta, rodando sobre mim própria e de imediato cruzei o meu olhar com a “Dawn”. Não me apressei na sua direcção. Rondei o pavilhão e ela aparecia e desaparecia.

Dançava para mim.

Sentei-me no banco de pedra, no extremo mais longe da dita figura. Olhei-a fixa e demoradamente. Fotografei-a.

Os cães vadios continuavam a brincar na terra batida, alheios ao que se passava a poucos metros deles.

Vida de cão.

Passado algum tempo alguém se sentou ao meu lado, tentando ver o que eu escrevia. Odiei-o e fui-me embora.

Passei por trás do muro de travertina que serve de encosto ao banco, em direcção à estátua. Ao aproximar-me, a sua imponência aumentava. Estava num pedestal.

Quando a sua superioridade se tornou insuportável, virei-lhe as costas e fui para o centro do pavilhão. Esperei cerca de quinze minutos até me poder sentar numa das duas cadeiras Barcelona. Aproveitei esse tempo para observar o espaço.

Existem apenas duas cadeiras e vários bancos. O desgaste das primeiras é muito superior ao dos bancos e conferiu-lhes não só uma textura mais marcada, como também uma sensação de colagem ao toque. Tenho as costas a descoberto e sobe-me um arrepio cada vez que me encosto ou desencosto. Sinto algo que se divide entre a repugnância e o prazer. Ainda assim, permaneço sentada.

El loco tem uma enorme dificuldade em controlar a entrada das pessoas. Existe uma nítida confusão entre o exterior e o interior. Choverá sobre a Dwan? Hoje não concerteza, estão 25ºC.

Continuo sentada na cadeira Barcelona. Estou cercada de predadores. Não eu, mas a cadeira. Estão furiosos porque nunca mais me levanto. Estou absorvida pela escrita e não lhes dou a menor importância. Não sinto o mais pequeno remorso por ser egoísta. Teoricamente existe ainda outra cadeira livre, mas está demasiado próxima da minha , o que na prática significa que ninguém se atreve a sentar.

Estão furiosos.

Devem ser franceses.

A mola do meu bloco de notas fez barulho, tenho a certeza de que todos se assustaram, mas não disseram nada. Reina o silêncio, ninguém se atreve a falar.

Aliás, El loco parece-me deprimido (talvez fale com ele mais tarde).

Uma jovem aproximou-se de mim com um movimento brusco, em tom de ameaça. Não lhe liguei nenhuma. Está de jeans e sapatos ténis. Tem um lenço pendurado numa das presilhas das calças que se confunde com a textura do ónix. É um daqueles lenços banais debotados em amarelos e castanhos.

Lá vem o francês outra vez!

Tenho cinco pessoas à minha volta, ninguém se atreve. Ops…uma sentou-se. Estúpida. Ainda bem que o escrevo para não ter de lho dizer. Ainda por cima é feia, está vestida de caqui. Não é feia por estar vestida de caqui, nem porque não seja bonita, é feia porque se sentou onde não devia.

Agora é que o francês está desolado.

El loco continua deprimido, falo com ele mais tarde.

Aparece um amigo da “feia porque se sentou onde não devia” e foram os dois para dois bancos. Acho que são portugueses.

Sinto que o francês está a chegar ao limite da sua paciência, está prestes a explodir. Encostou-se a uma coluna.

Estou no topo da hierarquia desde as 12:00 e já são 12:35.

O francês aguentou até às 12:39 e acabou de se sentar ao meu lado. Exala um cheiro levemente desagradável, mas não o suficiente para me mandar embora. É uma pena que ele tenha dado este passo, pois eu preparava-me para me levantar e observar o desenrolar dos acontecimentos.

Está desconfortavelmente sentado, com o queixo apoiado na mão direita…ops… foi-se embora, são 12:43, nem chegou a tirar a mochila que tinha às costas.

Só consigo ver as pernas do El loco, imóveis claro. Está sentado na sua cadeira à porta do pavilhão. Só se levanta quando alguém se aproxima. Coitado, falo com ele mais tarde.

Gente a mais, demasiado calor humano, demasiada intimidade com pessoas que não conheço de parte nenhuma. Vou à livraria.

13:25 – comprei um livro e estou agora sentada na enorme língua de pedra que aponta para a estátua. À minha frente está o espelho de água maior. Houve-se água a correr mas não se vê de onde é que ela vem.

Os planos verticais tendem a desmaterializar-se através de reflexos implícitos ou explícitos. Os espelhos de água enfatizam esta situação. É pena que esteja incoberto, senão os brilhos seriam mais exuberantes. Também podia chover.

Apesar de estar incoberto, El loco continua de óculos de sol: daqueles Rayban que os meus pais usavam há vinte anos atrás. Melhor dizendo: “no tempo da outra senhora”, ou ainda “no tempo da Maria Carqueja”. Não conheci nem uma nem outra. Nem tão pouco conheci alguém que as tivesse conhecido.

Mais tarde falo com El loco, talvez ele saiba.

Continua imóvel, na sua cadeira, seguramente deprimido, com os seus óculos de sol. Desconhece que a luz na retina estimula o cérebro a produzir uma qualquer substância de que desconheço o nome. Há que avisá-lo.

Mais tarde falo com ele.

Depois de sair do pavilhão

Fui até ao “Centro de cultura Contemporànea de Barcelona”. Começou a chover. Será que El loco continua de óculos?

Uma das peças expostas no CCCB é um ready-made que consiste numa cadeira, também do tempo da outra senhora, com um letreiro que dizia qualquer coisa como: “Sit down untill death tears you appart”. Lembrei-me d’ El loco. Nunca cheguei a falar com ele.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O tempo e os gatos















Quando fico algum tempo sem viajar, esqueço-me de muitas coisas, todas importantes. Felizmente, mais cedo ou mais tarde, acaba por chegar um dia em que tropeço numa foto, num cheiro, numa memória,
(tropeça-se em memórias?)
e volta tudo intacto, como se não tivesse estado fugido tempo nenhum. Que grande lata!
Apesar da lata deste tudo, ainda bem que ele volta. De repente, é como se esta foto tivesse sido feita ontem, ou hoje, de tão entranhada que me está no corpo. Como se o tempo não tivesse passado por ela. E é também com lata que declaro com o coração,
- Esta foto foi feita hoje à tarde e estes miúdos nunca hão-de crescer.
O chato do tempo que insiste em correr, passa cuidadosamente pelas coisas importantes. Passa de fininho, como um gato em gincana delicada por entre os Limoges da Dona Efigénia.
(A Dona Efigénia é uma velha rechonchuda e enrugada que vive embrulhada num xaile morno, e pendurada na janela do primeiro andar que dá para o quintal da minha madrinha. Nunca lhe conheci gatos, mas aquela é seguramente uma velha de gatos)
O tempo, como os gatos das velhas, reconhece o valor das coisas. O tempo passa ao lado desta foto, tal como o gato da Dona Efigénia se enrola cuidadosamente nos vazios minúsculos entre os Limoges coloridos que animam a cómoda rococó. Chega a tocar-lhes com o pêlo e se ficarmos muito calados
(Muito calados? Calados, é calados! Protestaria a minha irmã)
quase ouvimos os passos dengosos e arrastados das pantufas do gato, a namorar as porcelanas, enquanto a espinha arqueada se acomoda à delicadeza do obstáculo.
A improbabilidade  que faz com que aquele gato não faça as porcelanas em cacos, é a mesma que não deixa o tempo passar naquela foto.
O tempo é um senhor educado e inteligente. Sabe bem que neste caso, não tem outra hipótese senão passar ao largo, tirar o chapéu com cerimónia e dizer baixinho eternamente
- Olá meninos.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Eu, chata

Acabo de descobrir que sou uma chata e não estou nada satisfeita com a proeza.
Dei-me conta recentemente, que este blog tem 38 posts de "coisas sérias" e 7 posts de "coisas não muito sérias".
(????)
Quer eu queira quer não (e não quero), esta discrepância diz muito sobre mim e parece-me que não diz coisas lá muito boas. Diz pelo menos coisas demasiado sérias para o meu gosto, por incrível que pareça, bem sei.
O próprio nome das etiquetas é muito revelador. Do lado cinzento da vida temos uma etiqueta convicta de seu nome "coisas sérias", porém, do lado colorido da vida, temos um tímido "coisas não muito sérias".
- Há coisas absolutamente nada sérias, rapariga! E não há que ter medo de admitir.
Um post sobre bolos redondos e formas quadradas, por exemplo, não é uma coisa mesmo nada séria. Pelo menos ninguém acredita que seja.
Voltando a usar o meu lado "eu, avestruz", vou enfiar a cabeça num terreno (não lamacento, desta vez) e fingir que não me dei conta de nada disto. E levando ao limite esse meu lado "eu, avestruz", vou passar a etiquetar todos os meus posts (mesmo os sérios) com um descarado "coisas não muito sérias".
Há lá estado de alma mais maravilhoso que o da negação?
Duvido.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Eu, avestruz

Caros leitores,
Vamos lá ver se a gente se entende:
- O botão "não gosto" deste blog, é pura retórica. Boa?
O meu lado avestruz prefere enfiar a cabeça num terreno lamacento, a saber que há pessoas que não gostam do que eu escrevo, porém o meu lado democrata não me permite ter apenas o botão "gosto".
(Não sei se estão a ver o dilema)
Por isso sugiro que não matem a avestruz democrata que há em mim.
Agradecida.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Era mais ou menos assim ) ou assim (

Ontem a lua estava magrinha que eu vi.
Raramente a vejo, mas ontem entrou-me pelos olhos dentro de tão estreitinha e bem desenhada que estava, numa magreza de luz afiada. Quarto minguante parece que se chama, ou crescente, não sei dizer.
(Nunca sei onde raio é que a lua é mentirosa, mas não deve ser aqui)
Pouco importa para o caso. Era assim uma tirinha encurvada, um parênteses de luz pendurado no céu. E como é que eu, que abuso descaradamente dos parênteses, 
(Não por uma questão de estilo, mas por inabilidade ou da falta de paciência, para organizar ideias num texto)
(Prefiro que se trate de falta de paciência, mas desconfio que seja inabilidade) 
nunca tinha reparado naquele ali perdido, sempre no mesmo sítio, ou quase no mesmo sítio,
(Para lá da janela do meu quarto, estão a ver?)
(Como se houvesse outro quarto. Ou outra janela. Para lá da janela chega, neste caso)
à espera que eu o visse, ou que alguém lhe encontrasse o par, para poder cumprir o seu dever e aconchegar palavras lá dentro. Hoje vi-o e tive vontade de lhe gritar
- JÁ TE Viiiiiiii.
e depois dizer baixinho
- Fica tranquila, se vir o teu par por aí, vou a correr arranjar umas palavras e montamos tudo no sítio. Não te preocupes que já te vi.
Esperei um pouco sentada no terraço a fazer-lhe companhia, por vergonha de todas as noites passadas que nem dei por ela. Volta não volta, murmurava-lhe
- Descansa. Agora que te vi não te largo.
Como se ela fosse a algum lado. Assim sozinha sem par, o trabalho dela é ficar quieta, aparecer ali de tantos em tantos dias, como um cão que volta não volta, vai ao quarto do dono que morreu, na esperança de lá o encontrar. Assim estava a lua magrinha, de tantos em tantos dias
(Porque é que eu não sei quantos dias são? Lembro-me de estudar isto na escola. De que me serviu aquela aula? Podia ter faltado ou ter ficado no recreio a jogar ao berlinde ou à macaca. Dava o mesmo. Das duas maneiras chegaria onde estou hoje: já não salto à macaca e já não sei as fases da lua, portanto é indiferente hoje, mas na altura teria preferido a macaca, seguramente)
revezava o turno com as primas gordas e pendurava-se ali à espera do braço que lhe faltava, para poder pegar palavras ao colo.
Não sei se te diga que a espera é em vão. Ainda para mais, desconfio que parênteses aí em cima não servem para segurar grande coisa. Duas linhas já correm o risco de começar a fazer barriga. Num momento de fraqueza, ainda deixas cair alguma palavra, daquelas que mudam todo o sentido a uma frase. Os parênteses usam-se cá em baixo, escritos nos livros ou rabiscados em guardanapos de papel.
(Amo-te) por exemplo.
Os parênteses deste "amo-te" são como quem põe as mãos em concha e diz
- Espreita.
para prevenir que o senhor da mesa ao lado pense que é para ele.
Só cá em baixo podemos segurar linhas sem conta, com dois pequenos quartos minguantes ou crescentes. Mas mesmo cá em baixo, eu prefiro guardar os livros deitados, para não correr o risco de os encontrar de manhã, com as folhas brancas e palavras espalhadas por todo o lado.
Tanta conversa para nada. Mesmo que o teu par exista e que vinte linhas não façam barriga, o que é que estás a pensar meter lá dentro?
(Para lá da janela do meu quarto)?
ou
(amo-te)?
O que é que importa o que se vê para lá da janela do meu quarto? Ou se te amo?
Nada.
Fazemos assim, se prometeres não me deixar cair, deixo que me pegues ao colo. E se te portares bem, não te digo que és o único parênteses de luz do mundo.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Mais camaradas, mais amigos e mais palhaços

- Olá bom dia, posso ter um capuccino por favor?
- "Claro que sí. Su numero de pasaporte por favor."
(Hein?)
- Errr... não o tenho comigo, posso ter então um galão?
- "Claro que sí. Su numero de pasaporte por favor."
- Errr... um expresso talvez...
- "Claro que sí. Su numero de pasaporte por favor."
- &*+%/=%*+$$%*+%$#""%%&)(=#!"=*+

- Olá bom dia, queria arranjar as mãos. Tem disponibilidade para as 11h?
- "Claro que sí. Su numero de pasaporte por favor."
- &*+%/=%*+$$%*+%$#""%%&)(=#!"=*+
(reparem que saltei o "hein?")

- Olá bom dia...
- "Su numero de pasaporte por favor."
- Mas...
-"Claro que sí. Su numero de pasaporte por favor."
(Hein?)

Não, os venezuelanos NÃO TÊM a vida TODA controlada.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Camarada, amigo e um pouco palhaço

Na maioria dos os hotéis do mundo, existem letreiros para pendurar na porta do quarto, com uma mensagem diferente em cada uma das duas faces. De um lado
POR FAVOR NÃO INCOMODAR
e do outro
POR FAVOR ARRUME O QUARTO.
Para uma melhor e mais imediata leitura, cada uma destas faces tem geralmente uma cor diferente, ou qualquer coisa no seu desenho, que torne facilmente identificável o desejo do hóspede.
(não simpatizo nem um bocadinho com a palavra hóspede. lembro-me sempre de carraças e ténias) 
Esta leitura que se deseja fácil, serve para mim que quero pendurar rapidamente o letreiro sem usar muito o cérebro e também para a senhora da limpeza.
Dizia eu então e muito bem (isto é que é auto-estima), que este fenómeno acontece na maioria dos hotéis. Apenas na maioria. O hotel onde estou em Caracas, pertence infelizmente à minoria. A obsessão pelo vermelho é tanta por estas bandas, que os amigos de Chávez não conseguiram evitar fazer um letreiro vermelho dos dois lados, com minúsculas letras brancas com duas ordens opostas. De um lado
ENTRE
e do outro
NÃO ENTRE.
Bem sei que isto parece irrelevante num primeiro olhar, mas garanto que ao terceiro dia preocupada com o diabo do letreiro, passa a ser uma questão. Posso então dizer, que os meus dias neste hotel têm sido um verdadeiro inferno, por razões de cor partidária. Há quem diga que o facto de estar a chover torrencialmente e o exílio forçado dentro das ameias do hotel, por culpa do perigo ao virar de TODAS as esquinas, não ajudam e deixam-me tempo de sobra para pensar em coisas que não têm a menor importância, mas isso são as más línguas. Para mim o problema é claramente político.
E é por razões políticas, que a desgraçada da senhora da limpeza vai desenvolver miopia precoce e um valente problema de coluna, de tanto se agachar como quem espreita à fechadura, para poder ler com dificuldade, se deve ou não limpar aquele quarto. Isto claro se antes não lhe aparecer um hóspede
(e estas pragas que não me largam)
mais raivoso que eu, que se irrite de verdade, quando ela lhe bater à porta a horas impróprias, para "hacer la habitacion".

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Onde é que é mesmo o Equador?

No outro dia dei comigo a pensar que devia fazer uma lista com as minhas "não-determinações" para 2011. Um antídoto para a pressão que o final do ano traz consigo. Abri uma mensagem nova e comecei a escrever
- Eu não me vou inscrever no ginásio.
Alguns minutos depois,
- Eu não me vou inscrever no ginásio.
Outros tantos minutos mais tarde e... outra vez o ginásio.
Dei-me conta então, que apenas o ginásio era assunto que eu não queria determinar. Todos os outros me pareceram imprescindíveis. Ora, isto leva-me a crer, que a minha aversão, não é às determinações em si, mas sim à obrigatoriedade de as fazer em Dezembro. Como se houvesse uma linha que diz que a partir dali deve ou pode ser diferente. A linha que separa Dezembro de Janeiro é igual à que divide o Hemisfério Norte do Hemisfério Sul. São ambas imaginárias, o que permite que não existam, se não as quisermos imaginar. Não é fantástico?
Dezembro é um mês tão bom como os outros para determinações importantes. No meu caso é capaz de ser até um bocadinho pior, porque não consigo evitar que a pressão da linha imaginária, que não consigo ainda muito bem não imaginar, atrapalhe o processo.
Devia determinar coisas importantes. Independentemente do mês. Eu e todos.
Devíamos actualizar-nos constantemente, com a mesma naturalidade com que actualizamos o anti-vírus do nosso computador. Em ambos os casos, se não o fizermos, alguma coisa fica em risco. A diferença é que no caso do anti-vírus, o alerta aparece a piscar bem no meio do ecrã, e isso torna o risco real. Acabamos por actualizar a porcaria do anti-vírus e deixamo-nos em risco a nós próprios. Se isto não fosse humano, seria... estranho.
Por isso, o que vou fazer, é escrever a minha determinação em letras bem grossas e pendurá-la na porta do frigorífico, para que me entre pelos olhos dentro todos os dias, mesmo que essa determinação seja
- Eu não vou determinar nada para 2011

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Sugus de fruta... (versão musicada)

Deram cabo dos Sugus e eu quero saber quem é o responsável. Tenho umas coisinhas para lhe dizer. Quem souber onde ele anda, faça-me o favor de lhe fazer chegar esta cartinha.

Caro assassino de memórias infantis,

Escrevo-lhe porque não lhe posso ir bater à porta, com um saco cheinho das novas embalagens de Sugus, para lhe dar uso semelhante ao que alguns agentes da lei dão a sacos cheios de laranjas (não sei se está a ver a ideia). Não pense que se mata assim uma coisa importante, sem se sofrer as consequências. Bem sei que estamos em Portugal, mas há coisas que nem neste quadradinho de terra sem culpa, podem passar impunes. Os Sugus são, para sua infelicidade, uma delas.
Imagino que tenha nascido na era pós-Sugus, por isso deixo-lhe aqui uma ideia daquilo que matou para que no mínimo se envergonhe:

- Um Sugus não era um simples caramelo de fruta.
- Um Sugus era um quadradinho colorido, deliciosa e irritantemente (há que admitir) bem embrulhado, cujas esquinas vivas do seu embrulho, eram capazes de ferir seriamente os sabugos dos mais distraídos, na fúria salivada de lhe chegar ao miolo.
- Um Sugus tinha não só a capa colorida devidamente prensada à matéria pegajosa do interior, mas também uma segunda camada de um papel branco supostamente (repito, supostamente) não aderente, que envolvia e prevenia que a capa exterior colorida, se agarrasse com unhas e dentes ao caramelo. Infelizmente já não era tão eficaz a desempenhar essa função consigo mesmo. Enfim, ninguém é perfeito.
- Um Sugus era portanto, um caramelo destinado a ser mastigado com restos teimosos de papel branco supostamente não aderente, mas não com bocados de papel colorido aderente.
- Um Sugus (vários, neste caso) , devidamente melado (melados, neste caso), depois de algumas horas no bolso das calças, ganhava (epá, acabaram-se os plurais, imagino que já tenha apanhado a ideia) um quê de Lego em versão comestível e servia perfeitamente para fazer torres gigantescas de caramelos empilhados dos mais variados sabores, a que alguns (eu e o grupo lá da rua) chamavam de mega-tuti-fruti, uma versão do Sugus, praticamente impossível de fazer caber na boca.

Ora, os seus (sim, seus, que meus é que eles não são) novos Sugus, arruinaram tudo isto.

- Os seus novos Sugus, são meros caramelos de fruta,
- Os seus novos Sugus, já não são quadrados (como é que se atreve?) e vêm embrulhados em papel colorido, é certo, porém sem esquinas vivas no embrulho. Vêm com duas viradas nas pontas à laia de embrulho banal, e bastam duas voltas bem dadas, para os desembrulhar.
- Os seus novos Sugus vêm embrulhados numa única camada de papel irritante e verdadeiramente (não deliciosamente) anti-aderente.
- Os seus novos sugos já não servem o propósito do mítico mega-tuti-fruti. Bom, na verdade até servem, pelo menos em teoria, porque na prática não dá vontade nenhuma de fazer torres com eles, da mesma forma que não se empilham caramelos espanhóis, entende?


Resumindo, os seus novos Sugus passaram a ser imediatos e sem esforço, iguais a tantos outros, o que lhes tirou metade da graça. E se eu quisesse resumir ainda mais dir-lhe-ia apenas:
Um Sugus tem sabor a,
morango (vermelho), laranja (cor-de-laranja), ananás (verde), limão (azul. sim, azul. não é lindo?) e hortelã-pimenta (brancos com letras verdes. Obrigada Pedro!) 
e não,
pêra, cereja, maçã, e muito menos limão com embalagem amarela!
Estamos entendidos?

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Búzios urbanos

Búzios por todo o lado.
Foi isso que eu vi quando dobrei a esquina para aquela rua. Pilhas de búzios amontoados, como se o mar zangado os tivesse depositado todos ali, num golpe de onda à vela.
O mar zanga-se às vezes, fica branco cheio de espuma.
Nunca ninguém entendeu porque é que se zanga.
Nunca sequer ninguém deu importância à espuma da revolta.
Como não lhe vale chorar, porque ninguém consegue ver lágrimas no meio de uma imensidão de água, o mar decidiu encher-nos a rua de búzios.
E agora, quem tiver coragem que finja que não vê.
Ou melhor, monte-se numa nuvem e vá fingir para outro lado.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Par ou ímpar

Fico às escuras muitas vezes. Às voltas com problemas que na maior parte dos casos nunca existiram. Se existiram ou não, pouco importa para o caso, pois se fiquei sem luz...
Se for dia par (que é como quem diz, quando calha), não descanso enquanto não encontro motivo para o apagão.
Se for dia ímpar (que é como quem diz, quando calha), penso,
- Que se lixe, a escuridão é apenas um pano grosso.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Mariquices

Eu amo o Pedro.
O Pedro ama-me a mim mas também ama o Miguel.
O Miguel deve agradecer a Deus por ser homem, pois se fosse mulher eu estaria neste momento a caminho de Sintra, para lhe enfiar umas valentes cabeçadas, não sem antes porém, enfiar umas valentes cabeçadas no Pedro.
Esta coisa das cabeçadas intriga-me. Dar uma cabeçada significa receber uma cabeçada, ainda que de forma involuntária. Dói aos dois. No calor do momento poderá doer um bocadinho menos ao indivíduo enraivecido (eu) mas na lavagem dos cestos, o galo é igual. Não seria mais eficiente uma paulada? Resumindo: graças a Deus para todos (para mim também, de acordo com a teoria das cabeçadas) que o Miguel é homem.
No fundo, fico grata por ter quem faça o Pedro feliz quando não estou cá. Especialmente se essa pessoa for um homem. Fico feliz por haver quem o faça rir e quem o deixe como eu o vi no outro dia, acabado de regressar de Sintra, qual miúdo de seis anos com uma fisga nova. A atropelar as palavras, cheio de coisas para contar e cheio de frases começadas  por "O Miguel..."
O Miguel fez...
O Miguel diz...
O Miguel disse...
ou
Mas o Miguel...
Confesso que a parte de "mas o Miguel..." me enerva um bocadinho. O "mas" pressupõem que o que eu digo, não está tão certo quanto o que o Miguel disse um dia. Independentemente de quem está objectivamente mais certo, eu gostava de acreditar, de um ponto de vista assumidamente deturpado pelo amor, que para o Pedro eu estou sempre mais certa que o resto do mundo (incluindo o sacana do Miguel). Mariquices...
Apesar do "mas", admito que quase amo o Miguel também.
Ou não.
Não, neste caso deixo isso do amor lá com eles e fico na bancada a assistir deliciada ao brilhozinho nos olhos do Pedro no regresso dos almoços em Sintra. Não vou precisar de perguntar se foi, ou se vai. Vou saber, porque "o Miguel...." vai muitas coisas nesses dias.
Miguel, empresto-te o Pedro um bocadinho, mas não te atrevas a dar-lhe cabo da fisga, senão vou a Sintra e acabo contigo à paulada.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Barrigas e ecrãs

- Come  a sopa ac, faz-te bem.
Assim estou eu aqui em frente a um ecrã vazio.
- Escreve qualquer coisa ac, faz-te bem.
E eu sem vontade nenhuma de comer a sopa. Só o cheiro me enjoa.
Quando se está assim esquisita, ou estragada, ou ausente, ou lá o que é, não apetece nada.
Os olhos pregados na profundidade que o ecrã do portátil não tem, mas parece ter, como que à procura de alguma coisa lá longe, num longe que afinal é aqui. Nos ecrãs antigos era mais verosímil acreditar que existia um mundo lá dentro, onde nos podíamos perder. Cabeçudos aqueles ecrãs, cheios de respiradores a arejar o mundo que fervilhava lá dentro, quais sarjetas da 33st em NY. Que abraços bons e cheios, de cada vez que era preciso mudar o ecrã de sítio. A parte de vidro ternamente encostada à maciez da barriga, a electricidade estática a embirrar com a camisola de lã, e os braços arqueados na sua extensão máxima a aconchegá-lo, até o pousar com cuidado na nova morada.
- Agora ficas aqui.
E um último empurrãozinho com a barriga, a rende-lo de vez ao seu posicionamento para os próximos tempos.
Numa visão romântica da coisa, acho que gostava mais dos ecrãs pré-históricos. Nestes fininhos de PC da moda, custa-me a acreditar que aconteça alguma coisa lá dentro.
Entre ecrãs finos e grossos, a inércia acaba por ganhar. O ecrã entra em modo de economia de bateria, e de repente, um espelho preto a reflectir a profundidade limitada da sala onde estou sentada; o meu olhar vazio, plano; a mão a segurar o queixo e a fazer-me rugas onde elas ainda não existem, e os olhos caídos na profundidade que ainda agora ali estava.
Acorda rapariga. Aqui não há sarjetas fumegantes onde se pode ouvir o metro a passar. Olha para a tua cara vazia, ganha vergonha e vai lá para fora viver o mundo a 3D.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Gosto mais de olás

Nunca sei muito bem como me despedir por escrito. Ao vivo é simples: um aperto de mão ou um beijo, depende. Ao vivo pode dar-se cor a um aperto de mão ou retirar-se excesso de intimidade a um beijo. Por escrito não. Pelo menos eu não sei.
Nunca imaginei encontrar limitações na escrita. Ou melhor, não queria nada encontrar limitações na escrita.
Desiludiste-me, ouviste?
Um beijinho é piroso e infantil.
Um beijo é de amor.
Um abraço é masculino.
Um até breve é quase sempre mentira.
Um aperto de mão não se escreve.
(Caramba, não há apertos de mão feitos de letras)
Desiludiste-me, ouviste?
Estava aqui a pensar que o beijinho ali de cima só é infantil e piroso, quando precedido do "um". Beijinho por si só é adulto, porém demasiado beto. Também não serve, portanto. O "um" é que dá idade ao beijo e não o "inho". Incrível.
Surpreendeste-me, ouviste?
Apesar de masculino, gosto do abraço escrito, mas a verdade é que ninguém anda por aí a abraçar-se. Abraçam-se os antigos companheiros de tropa, intercalando apertos com fortes palmadas nas costas, a confirmar a dureza que os fez sobreviver à guerra. Abraçamo-nos também todos muito nos velórios, para esconder as lágrimas nos ombros daqueles que não são netos do falecido.
(Acabo de sugerir que chorei no velório da minha avó. O que é mentira. Não chorei. Mas se gostasse de chorar em bando, teria chorado)
Um abraço é uma pieguice. Chorar abraçado é uma pieguice pior. Chorar abraçado no velório de uma avó velhíssima, que morreu sem dor, limitando-se a deixar de respirar,
(apre, que até morrer soubeste fazer bem)
é abaixo de cão.
Se fosse a tempo de te escrever uma carta para me despedir...
Ainda bem que não vou.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Cisco sem olho

O cabo ferrador tinha uma lágrima importante que eu não vi.
Numa primeira leitura, confundi-a com as lágrimas de bagaço. Só à segunda me dei conta daquela pérola ali escondida, a implorar ser descoberta.
Que raiva, quase não via aquela lágrima.
Fico triste por não a ter encontrado à primeira, e feliz por lá ter voltado a tempo de a secar.
(porque é que eu nunca posso ficar apenas uma coisa, ou outra?)
Uma lágrima diferente, escondida, que eu só soube distinguir depois.
Para o cabo ferrador dá-lhe igual que eu lhe descubra a lágrima importante à primeira, ou à vigésima sétima vez. Está para ali escrito, imortalizado numa crónica, tem tempo.
São as tuas que me assusta não ver à primeira.
(também me assusta um bocadinho que não vejas as minhas)
Quantas lágrimas de verdade terei ignorado por ignorância?
Desculpa-me pelas lágrimas que eu não fui capaz de ver, ou que confundi com restos de um bocejo banal. Se pudesse voltava atrás.
Alguns dos meus restos de bocejo também te passaram ao lado que eu bem me lembro. Uns porque eu assim quis, outros que apenas fingi querer esconder.
(devem ter sido mais os que fingi querer esconder)
Acho que desejei sempre que fosses capaz de ver mais além
(mais dentro neste caso)
e foste muitas vezes. As suficientes pelo menos.
Podemos ter uma lágrima secreta.
Queres ter uma lágrima secreta comigo?
Eu quero.
Se temos de ter lágrimas (e tenho), que seja contigo, e que seja secreta.

... e mais uma lágrima de cisco, num cisco sem olho.
(Esta podes fazer de conta que não viste. Não importa)

Está lido

Vergílio Ferreira disse-lhe isto:
"Recomeça tudo de novo. A terra não pode morrer. Como viveria ela sem ti?"
e ele disse-me isto:
"Recomeça tudo de novo. A terra não pode morrer. Como viveria ela sem ti?"
e eu li isto:
Amo-te e não quero a terra sem ti.
Se calhar ninguém me disse nada, mas o que eu li, está lido.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Já sei que agora é comigo

Não sou mãe, mas talvez por ser filha, leio regularmente artigos sobre como educar o seu filho, como fazer tudo bem, para que não sobre nada para ele resolver mais tarde. A teoria está explicada em todo o lado: livros, revistas, conversas de café, jornais, folhetos...  Já a prática caminha por aí. As práticas caminham por aí, fazem disparates, cometem erros, mas às vezes também acertam. Pois é, nós as práticas às vezes também acertamos, apesar de andarmos vezes demais longe da teoria.
Tropeço em informação de como ser boa mãe, com a frequência com que tropeço em artigos sobre como ser melhor pessoa.
(Está na moda, esta coisa do auto-conhecimento)
Começam geralmente por uma enorme lista de opções, precedidas de uma ordem: "Identifique por favor o seu tipo de personalidade":
1. Passivo
2. Agressivo
...
...
...
e 5.
como se fosse apenas mais um,
5. Assertivo
e não é. Não é mais um. Está ali para enganar os passivos e os agressivos deste mundo. Para nos fazer crer que há cincos por aí, a fazer quase tudo bem. Não há cincos. A mim não me cabe que haja cincos. Por isso, pela parte que me toca, podem não se cansar a disfarçar o objectivo no meio de uma lista de possibilidades reais. A assertividade é um objectivo e não uma característica por si só. Se a procurarmos muito, aproximamo-nos. Só isso, e com sorte.
(atenção que vou fazer um parêntesis enorme. Não se esqueçam do que deixámos para trás. Aqui vai: nestes momentos lembro-me sempre do meu pai, que tinha eu ainda poucos anos, me escreveu uma dedicatória num daqueles bloquinhos pirosos com desenhos queridos e cheirinho e tudo, que dizia o seguinte: "o sol está longe, mas é belo". Na altura fiquei especada, a olhar ora para ele, ora para a folha e a achar aquilo... no mínimo, esquisito. Todos os meus amigos tinham escrito coisas "cool" e de repente, a poesia sem rima do meu pai, estragou o ramalhete. Hoje entendo-o. Assim está a assertividade: quente!)
Voltando aos filhos, também aí existem listas sem fim sobre "o que fazer" e "o que não fazer". Descrente de que se consiga sempre fazer a coisa certa, preocupa-me apenas que não se faça nada. É feio não se fazer nada. É feio esperar que os filhos cresçam para que o problema passe a ser deles. É feio chutar a merda de geração em geração. É feio não se agarrar o touro pelos cornos, porque se tu não o agarrares, vou ter eu que o agarrar mais tarde. E eu não pedi para vir à praça. Entendes a diferença?
Não sei bem até que idade se pode culpar os outros por aquilo que não nos deram, as aprendizagens que não nos proporcionaram, as falhas, que se não corrermos rápido, iremos seguramente repetir.
(Pois é, iremos seguramente repetir. Porque somos afinal falíveis como os demais. Tão falíveis quanto os que não conseguiram pegar o touro)
Não sei bem até que idade se pode culpar os outros por aquilo que acabámos por ser, ou não ter.
Dava-me jeito e muito menos trabalho seguramente, culpar a sorte, ou a lua, ou a prima da minha avó que era demasiado rígida, ou demasiado negligente, ou demasiado outra coisa qualquer. Dava-me jeito, e posso, e até me apetece, mas agora é comigo. E se agora é comigo, pode ser o que eu quiser.
Pode?
Pode.
E eu a desejar culpar eternamente a prima da minha avó.
E eu a desejar não saber que,
pode.
E agora já sei.
Já ouvi, caramba!
Já sei que agora é comigo!

sábado, 2 de outubro de 2010

A minha crise

Voei a noite inteira do Rio de Janeiro para Lisboa, dormi o dia seguinte inteiro (intermitentemente é certo) e à noite enfiei uma roupa à pressa para comparecer num jantar chato, daqueles que é suposto ser giro e ao qual eu não podia faltar. 
Ligo a televisão para me fazer companhia neste processo e oiço o Sr. Sócrates a falar. Sigo para a casa de banho para dar uma corzinha à cara que gritava noitada e o Sr. Sócrates continuava a dizer coisas. Comecei a ficar preocupada. É verdade que o Sr. Sócrates fala frequentemente na televisão, mas assim tanto tempo e a falar comigo como se estivesse sentado no sofá lá de casa, com uma ar querido a explicar-me coisas, pareceu-me suspeito, e era. Fui ao tal do jantar com a palavra "cortes" na cabeça, porém, com o apetite voraz do costume.
Hoje já sei que há mesmo uma crise grave, sendo a definição de crise grave, uma crise que afecta directamente o povo (que para quem não sabe, somos nós), em percentagens razoáveis, entre outras coisas. Devia preocupar-me, mas sinceramente não consigo sentir ponta de ansiedade, por culpa deste assunto. Sem fortuna no banco, nem nenhuma tia rica às portas da morte, esta paz perante o caos eminente, não parece fazer muito sentido. Mas faz. 
Provavelmente o motivo da minha paz é absurdo aos olhos de quem já viveu uma crise e já comeu pão com dentes. Imagino até, que se alguém dessas fornadas desafortunadas (ou afortunadas) ler este "post", dê umas boas gargalhadas, à conta de tamanha e provável ingenuidade. 
Seja como for, eu nasci na bonança, cresci na bonança, nunca tive excesso mas também nunca me faltou nada. Tive tudo aquilo que os meus colegas de turma tiveram e ainda mais umas coisinhas. A única causa por que tive de lutar (e que me valeu uma valente sova) foi um cubo mágico que desejei só para mim e não partilhado com a minha irmã (a seu tempo contarei essa história. Merece um post só para ela). Comi carne ou peixe todos os dias, tive o quarto entupido com brinquedos caros, fui para a faculdade sem recorrer a créditos, comecei a trabalhar aos 18, tive carro próprio aos 19 anos... Enfim, teoricamente não tenho de que me queixar.
Mas tenho.
Dei-me conta que afinal tinha motivo para me queixar quando no outro dia, ouvi uma notícia sobre uma figura pública acusada de um crime hediondo, que apesar de reclamar a sua inocência, tinha já a sua vida destruída por tamanha suspeita. Decidido a dedicar o resto da sua vida a fazer prova da sua inocência, não consegui evitar sentir uma pontinha de inveja:
- Aquele cabrão tem uma causa. Uma causa das grandes que o agarra à vida, e eu tive um cubo mágico em tempos, e agora não tenho nada, ou tenho pouco.
(se calhar é pouco, apenas porque é o que tenho)
Resumindo, vida corre-me bem, mas é só isso: corre-me. Continuo a comer carne e peixe com a frequência que me apetece, troquei de carro, continuo a trabalhar, não sou aumentada há 15 anos é um facto, mas não me posso queixar. Ainda assim sou uma descrente.
Deixei há muitos anos de acreditar na política. Desagrada-me que os políticos pintem o cabelo de grisalho para terem uma imagem mais sábia e confiável. Pode dizer-se que se quer passar a imagem do que se é. Pode ser, mas eu tenho uma tendência (provavelmente ingénua, lá está) para acreditar que o que é, vê-se e pronto. O conceito de criar a realidade ultrapassa-me, ou pelo menos assusta-me, apesar de o saber "moderno".
Tal como me assusta o conceito de "pessoas informadas", na medida em que somos informados daquilo que alguém nos quer informar. Há maior ditadura que esta? A ditadura da pretensa informação?
Sem querer entrar na choraminguisse barata da vitimização, é isto que penso, ou melhor, é por estas e por outras que não acredito. 
No fundo, quero acreditar que com esta história da crise e dos maus tempos que aí vêm, passaremos a fazer como J.D.Salinger, que deixou de publicar, porém continuou a escrever. Porque escrever poderemos sempre, tal como plantar batatas. Desgraçados isso sim, dos que tiveram o azar de nascer em solo infértil.
No dia que conseguirmos ser felizes desta forma tão sublime, estaremos prontos para voltar a publicar.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

(este post não tem título)

E uma vez mais, nada.
E uma vez mais, procurei no sítio errado.
E uma vez mais, procurei tudo.
E uma vez mais, não encontrei nada.
E uma vez mais apagaram as luzes todas.
E uma vez mais, não quero nada.
E nunca mais.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Coisinhas que eram

O supermercado da D. Isilda não resistiu aos hipermercados e morreu, como todos os seus colegas de carteira. Sobram alguns, quase nenhum nas grandes cidades. Hoje não vou desenrolar o novelo nostálgico. Morreu de velho e pronto. É assim que as coisas acontecem.
Enquanto viveu, o supermercado da D. Isilda morava na porta ao lado do meu colégio e era paragem diária obrigatória da minha mãe no nosso regresso a casa. A D. Isilda, como jeitosa para o negócio que era, percebeu desde cedo que valia a pena investir em mim. Havia ali potencial consumista e chantagista. Tratava-me nas palminhas, subornava-me com rebuçados de qualidade duvidosa que me deixavam a língua tingida de cores baratas e as bochechas estrelhaçadas, em troca de alguma pressão manipuladora junto de quem tinha o dinheiro: a mãe. A D. Isilda era esperta e soube ver que eu faria aquilo muito bem. Não se enganou. Assim que me via ao longe na rua, rasgava um sorriso largo de cifrões nos olhos. Toda ela era luz. Trocávamos olhares cúmplices, piscadelas de olho marotas, e a D. Isilda movia a boca freneticamente a dizer coisas sem som, de cada vez que a minha mãe virava costas. Eu acenava que sim com a cabeça mas raramente entendia as ordens. Suponho que fossem palavras encorajadoras a confirmar a aliança,
- Vá lá, já sabes como é. Tenho aqui rebuçadinhos novos.
(piscadela de olho)
Eu, fiel, sempre que a D.Isilda dizia qualquer coisa como,
- Tenho aqui uns pesseguinhos lindos para a menina.
acenava com a cabeça que sim e punha uma cara angelical a insinuar
- Morro se não comer pesseguinhos. ESTES pesseguinhos.
No supermercado da D. Isilda não havia coisas, havia coisinhas, principalmente quando se tratava de coisas para a menina:
pesseguinhos, 
perinhas, 
batatinhas, 
nabicinhas... 
Tudo fresquinho.
Infelizmente nunca eram coisinhas boas como bolachinhas de chocolate, ou bolinhos com creme, ou pastilhinhas. Eram sempre frutinhas ou outras coisinhas chatas (chatinhas neste caso) com que se fazem sopas. Apesar de naquela idade nada do que serve para fazer sopa ter qualquer relevância, eu declarava desejo incontrolável pelas tais coisinhas que a D.Isilda propunha para a menina, em troca de línguas tingidas e bochechas estrelhaçadas.
Um dia, num daqueles meus momentos de paixão arrebatada, disparatada e irreversível, declarei:
- Mãe, quero aqueles rebuçados gigantes. Pode ser?
Os rebuçados gigantes eram nada menos que pastilhas de detergente para sanita, magnificamente embrulhados em papel celofane das mais variadas cores e dispostos na prateleira de forma absolutamente apetitosa.
- Aquilo não são rebuçados, são pastilhas de detergente para a sanita.
Pensei um momento. Pesei os prós e os contras (mal claro está), conclui que uma dor de barriga não era nada comparada com a posse de tão maravilhoso e hipotético rebuçado e rematei,
- Não faz mal  mãe, eu gosto daqueles rebuçados mesmo assim.
- Mesmo assim como, se aquilo não são rebuçados?
- Mesmo assim como eles são.
- AC, NÃO SÃO rebuçados! São pastilhas desinfectantes para a sanita.
- Pode ser mãe. Pode ser mesmo essas pastilhas para a sanita que parecem rebuçados.
- AC, se comeres aquilo vais ficar mal da barriga. Aquilo não é para comer.
- Mas eu gosto.
Quando se me acabavam os argumentos, entrava em modo de "mas eu gosto". Não é possível refutar um "mas eu gosto". Ou melhor, até é, mas dá imenso trabalho a pais esgotados por uma dia de trabalho rotineiro e as criancinhas apercebem-se rapidamente disso. Apesar do cansaço materno, dali vinha sempre uma longa e aborrecida conversa sobre como não é possível gostar-se de uma coisa que não se conhece, que nunca se provou, como é preciso ser-se racional às vezes e tudo mais que as mães tentam ensinar às crias e que na maioria dos casos fica algures arquivado no cérebro, chegando apenas a surtir efeito na idade adulta. 
(Deve ser necessária muita perseverança e capacidade de acreditar para se ser mãe. Há-de lá ficar qualquer coisa, é preciso acreditar. A verdade é que fica e a prova disso é que eu não ando por aí a devorar pastilhas de w.c. pato)
Fazendo uso da minha valiosa aliança com a D. Isilda, pisquei-lhe o olho  como quem diz:
- Se queres que te continue a ajudar a vender frutinha e coisinhas para a sopa, é bom que me dês uma ajudinha aqui. 
Ela entendeu a cobrança e disparou
- Então mas se a menina quer, compre-lhe e não a deixe comer, ou deixe-a provar para desencrençar.
O que a D.Isilda não sabia é que eu comeria as pastilhas de sanita de qualquer jeito. Aquilo para mim eram rebuçados e não havia volta a dar. Felizmente a minha mãe conhecia-me bem demais e adivinhou perigosa a compra. Poupámos uma noite no hospital mas a minha aliança com a D. Isilda nunca mais foi a mesma. Nem a aliança, nem a capacidade de amar incondicionalmente.
É ou não é grande esta capacidade de amar cegamente, de amar um rebuçado que afinal é uma pastilha desinfectante para sanita?
É, não.
Era.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Rui de papel

"E se eu gostasse muito de morrer" não me larga o corpo.
Adoro títulos.
Leio muito menos do que devia. Ou melhor, leio muito menos do que queria. 
(Devia agora! Queria agora! Leio o que quero, que é o que devo. Seja como for, a verdade é que leio pouco) 
Muito do pouco que leio, são títulos. O que quer dizer que à minha maneira, leio os livros.
Como preguiçosa encartada que sou, encontrei uma forma de ler que não me dá cabo da vista.
(Ao fim de tantos anos, continua a surpreender-me a mestria com que invento desculpas credíveis para a minha inércia)
Se um livro é feito a dois, sinto que cumpro pelo menos parte da minha parte, quando um título me anda a contar histórias durante dias.
"E se eu gostasse muito de morrer"
Não é o título premiado, bem sei, mas é o que se agarrou a mim. Que fazer? Agora é deixá-lo fazer o seu trabalho.
Evito entrevistas com o autor, artigos sobre o prémio, críticas, elogios, interrompo vídeos a meio porque não quero saber mais. Não quero estragar o trabalho ao título. Não quero nada que se assemelhe com a realidade. Tenho a minha história e serve-me por agora. Um dia vou lê-lo, este e o premiado também. Por agora prefiro demorar-me a olhar a foto. Imagino o homem para lá do papel e dou comigo a pensar,
e se ele gostasse muito de morrer?
Era uma merda Rui de papel. Quanto ao outro não sei, ao de papel dir-lhe-ia, com a voz tremida e os olhos bem abertos a segurar as lágrimas,
- Pode morrer depois?
- Depois de?
- Sei lá. Depois.
E se isto não chegasse para lhe chantagear a vontade, virava tudo ao contrário e perguntava-lhe,
- E se gostássemos todos muito de morrer?
Entendes agora?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Linda rima com ainda

Sou uma coisa linda que não se vê.
Sou uma coisa linda que não se vê,
ainda.
Se não se vê é porque não sou.
Se não se vê,
ainda,
é porque não sou,
ainda.
Se sou uma coisa linda que não se vê,
ainda,
é porque não sou nada, mas quando for,
vou ser ainda muito mais,
linda.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Aconteceu aqui

É raro ir ao Centro de Saúde. No outro dia, não tive como evitar a visita.
Arrastei-me em braços próprios rua acima e lá fui eu a exibir as canadianas vermelhas pelo caminho.
(As canadianas devem ser contemporâneas do grená. Vai-se a ver e ainda são primos, ou assim)
O Centro de Saúde acontece sem se saber muito bem como, num prédio de habitação. E uso "acontece" no seu sentido mais primário. Aconteceu ali por mera casualidade. Nada naquele Centro de saúde parece obedecer a outra lógica que não a do acaso. Bom, se calhar estou a ser injusta, a localização talvez não seja coincidência. Vislumbro um laivo ténue de intencionalidade no facto do Centro de Saúde de Campo de Ourique, se situar em Campo de Ourique. Aconteceu-nos aquele centro de saúde, mas vá lá, aconteceu no bairro dos utentes, Campo de Ourique. Menos mal
Independentemente da minha observação muito pouco original sobre o nosso Serviço Nacional de Saúde, que também esse nos acontece (estou a gostar disto do verbo acontecer. Incrível como uma palavrinha tão aborrecida pode ser afinal tão cheia de coisas), a verdade é que esta minha visita ao Centro de Saúde, superou em muito o mero queixume sobre listas de espera gigantes, médicos que semeiam pinças nas barrigas dos doentes ou administrativas de cabelo louro com raízes pretas, a mandar naquele bocadinho de território tão fértil, que medeia entre o balcão e a cadeira coxa onde depositam o rabo todas as manhãs, geralmente com quarenta e cinco minutos de atraso.
Este cenário dantesco eu já esperava, o que me surpreendeu foi o outro.
Entrei no prédio de habitação e esforcei-me por acreditar que estava no sítio certo. Tirei uma senha, não sem antes interromper o sudoku do segurança para confirmar que aquela era a senha certa. É preciso ter muito cuidado em sítios destes, um erro é geralmente fatal. Ninguém perdoa. Tiraste a senha errada, agora aguentas-te mais uma meia-horita à espera da tua verdadeira vez, ó espertinha. Nestas circunstâncias opto pela minha versão burra-não-pensante, vagamente aparentada do grilo-falante e não presumo nada, nem o mais óbvio. Pergunto tudo. TUDO!
Confirmada a senha certa. Esperei. Algum (muito) tempo depois,
dlim-dlom... Senha 49, balcão 3.
Agarrei-me à mala e às canadianas (reparem que são três coisas para apenas duas mãos), tentei organizar-me rapidamente e quando arranco o primeiro salto à vara,
dlim-dlom... Senha 50, balcão 3.
Corri à vara (varas neste caso) o mais que pude aqueles longíquos três ou quatro metros até ao balcão e consideirei-me uma sortuda por ter sido atendida, apesar da simpática senhora não ter conseguido evitar um esgar moralista acompanhado de,
- Já tinha chamado o seu número.
E eu e com um ar agradecido e compreensivo,
- Pois...
A custo deu-me um papel gigante para a mão, com meia dúzia de letras a desperdiçar uma imensidão branca, e lá fui eu ao terceiro andar, entregar uma árvore A4 gratuitamente morta, a um balcão vazio. Coxeei um pouco à volta do balcão, em saltinhos curtos já com as canadianas penduradas no antebraço, a farejar a possibilidade da senhora daquele balcão ter ido à casa-de-banho. Afinal é mesmo assim, esclareceu-me a senhora da limpeza, naquele balcão não mora ninguém. É só deixar a árvore morta em cima do balcão que alguém lhe há-de vir fazer o enterro no fim do expediente.
Apesar de tudo aquilo me parecer suspeito, obedeci e sentei-me à espera.
Duas senhoras enchiam a sala de espera com uma conversa cantada em crioulo e lembrei-me dos meus pais que depois de reformados deram em gaiteiros ainda não velhos e foram viver para Cabo Verde. A senhora da limpeza, velha e franzina, arrastava um esfregona pesada e gorda para cá e para lá num chão sem remédio. Vi-lhe as cordas nas mãos, cheinhas de sangue, a ameaçar explodir a cada lambuzadela. Que desgraça seria, pensei, tudo sujo outra vez. Felizmente não houve tragédia, para além da que se passava na televisão onde o Fernando Mendes gritava preços certos.
No meio de tantos estímulos barulhentos, detectei um outro que se impunha perigosamente pelo silêncio. Ao fundo, piscavam ordens num placar luminoso, rectangular, discreto, com letras construídas por pontinhos vermelhos,
"Seja tolerante"
Plim
"Mantenha o silêncio"
Plim
"Beba água"
Plim
"Please don't drink and drive"
E de quando em vez, entre ordens, rebentava uma bombinha desenhada também a pontinhos vermelhos, como quem diz: BUM! Estamos a brincar, pode fazer o que quiser que não o levamos para a salinha das experiências científicas. E logo de seguida novamente o tom ameaçador (na verdade não era bem ameaçador, era mais surreal)
"Seja tolerante"
Plim
"Mantenha o silêncio"
Plim
"Beba água"
Plim
"Please don't drink and drive"
Qualquer uma destas ordens individualmente, seria vista naturalmente como um conselho. A conjugação de todas num único placar e num único Centro de Saúde é que atira tudo para o mundo de Dalí.
Seja tolerante? Beba água? Assim de chofre? Sem mais nem menos?
Por momentos senti que havia alguém por trás de um vidro espelhado a observar o comportamento humano, neste caso desempenhado por uma coxa de canadianas vermelhas, duas cabo-verdianas tagarelas e uma velha de cordas nas mãos. Seja tolerante, escrito num placar luminoso, é coisa de admirável mundo novo, que pressupõe tensão e conflito eminente entre indivíduos da mesma espécie. E lá estou eu a imaginar-me numa carneirada de seres humanos, todos vestidos com bata de bloco operatório, a ser levada por uma passadeira rolante, para uma sala muito branca (não há coisas mais ou menos brancas. Branco é branco).
Sem querer parecer paranóica, a verdade é que fiquei com medo e não quero lá voltar. Se calhar sou uma daquelas "alfa" que devia obedecer a ordens sem questionar e um erro de programação qualquer deixou-me perigosamente inteligente. Se a ordem seja tolerante está lá, é para ser cumprida e questioná-la não faz bem à saúde de uma "alfa". Também aqui é caso para me fazer de burra-não-pensante pelo menos enquanto puder.

sábado, 4 de setembro de 2010

Grená, uma estrela improvável

Em tempos houve duas coisas que desejei secretamente: a máquina de bilhetes do revisor do autocarro e uma pena de pavão.
Secretamente porque nunca me passou pela cabeça que tanto uma como outra fossem acessíveis. Secretamente, porque as julgava irremediavelmente inalcançáveis. Se soubesse que a concretização de um sonho estava ao alcance de um simples pedido...
Sempre me disseram que não se mexe no que não é nosso, e eu que nunca fui cumpridora, cumpri estupidamente esta regra: a máquina do revisor é do revisor e a pena do pavão é do pavão.
Deliciei-me nestes sonhos, isso posso garantir. Apesar do desejo imenso, a aceitação do destino da não concretização fizeram-me saborear cada momento com uma tranquilidade que não me lembro de ter igualado em nenhuma outra altura da vida. Será que foi mesmo assim? Provavelmente estou para aqui a fabricar memórias.
Não sei se sofri com isso e se sofri, não me lembro, por isso para o caso não tem a menor importância. Lembro-me isso sim, do desejo e isso sim, importa e muito. Como é que nunca me passou pela cabeça a frase,
- Mãe, podes pedir ao revisor que me deixe ser eu a tirar o meu bilhete?
Ou
- Pai, podes roubar uma pena ao pavão?
(Deixo a valentia para os homens. A mãe que peça delicadamente ao revisor e o pai que se faça homem e arranque uma pena ao pavão, que entre tantas que arrasta pelo chão, uma a menos não lhe fará falta seguramente)
Nunca pedi. Nunca pensei sequer pedir. Que estupidez. Que frustração gratuita.
No autocarro escolhia sempre um lugar de coxia, por oposição à maioria dos miúdos que se esgadanhavam por um lugar à janela. Dezenas de olhares vazios a mirar o mundo escorregadio lá fora, enquanto resumiam problemas quotidianos no meio do trânsito intenso da hora de ponta. E eu a sonhar lá dentro, indiferente às árvores que corriam para trás. Por várias vezes tive vontade de dar um grito:
- Para onde olham? Está tudo cá dentro.
Corpo apoiado no braço da cadeira, pés a balançar o peso das botas a ritmo cadenciado, cabeça no corredor a espreitar por entre os bancos de napa grená (ainda é uma cor, o grená? Ou foi-se para sempre como a moda das botas ortopédicas?)... e ele ao fundo, a alinhar teclas verdes e vermelhas com o polegar móido, antes de fazer saltar o bilhete num gesto seco de jackpot.
Daquela máquina de chumbo (não sei se era chumbo, nunca lhe toquei, mas parecia chumbo) saiam bilhetes ridículos, pouco dignos de tamanho porte. Assim uns quadradinhos minúsculos de papel branco e gramagem pobre, com letras roxas desbotadas, ao estilo de senha de almoço do liceu.
A máquina do revisor tem história, já o pavão nem tanto. Ou melhor, teve na altura. A história morreu faz anos. Lembro-me da paixão mas sem pormenores e hoje, com o distanciamento adequado, espanta-me que me tenha acontecido. Há lá coisa mais desajeitada que um pavão? Perna curta a segurar o balanço desajeitado daquele corpo de pato, cabecinha de garnisé a fingir delicadeza e às costas, um enorme véu de penas rastejantes e coloridas para enganar as damas. E enganava. A mim enganou-me. No meio deste cenário, quero acreditar que foram as cores que me deram a volta à cabeça. Quanto às cores não tenho nada a dizer sr. pavão. Sim senhor, o que eu gostava de ter tocado naquelas cores.
Hoje em dia, posso fazer isso tudo se me apetecer, mas não me apetece.
Cada coisa no seu lugar. Tenho medo de descobrir que afinal as penas dos pavões não são assim tão coloridas e que as máquinas de chumbo são iguais aos bilhetes miseráveis que dela saem. Por medo deixo-me estar quieta à espera do próximo sonho que vou fazer questão de não concretizar.

sábado, 21 de agosto de 2010

Constelação

- Uiii, tens uma constelação tramada! O Eremita e a Lua... Uiiii....
Ah... Então é isso, pensei. Menos mal. Saber a causa do que me acontece ajuda-me a lidar melhor com a situação.
Ah... Então é isso. E tudo na mesma, mas... Se é isso, menos mal.
É incrível a paz que encontro na explicação das coisas. Descansa-me saber que há uma explicação, mesmo quando não a entendo.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Quero

Hoje fiz o que faço há uns tempos, por não me apetecer fazer outra coisa: corro à frente dos dias, com o mesmo desespero com que em tempos corri à frente do joão que era o chato dos carolos lá do colégio. Levanto-me antes dele e ponho-me numa corrida desenfreada pelo mundo, na esperança que o dia não me apanhe. Canso-me enquanto há sol, e à noite adormeço com a serenidade de quem se safou ao teste de Matemática.
- Menos um!
Porém hoje, no meio desta correria disparatada de tempo perdido,
"Quer conhecê-lo?"
Largo os sacos no chão, sem jeito. Ouvem-se garrafas mas não importa. O que são umas garrafas barulhentas em comparação com um,
"Quer conhecê-lo?"
Levo as mãos à cara para não molhar a camisa e fico ali escondida uns segundos, a respirar em esforço. Afasto o indicador, espreito o mundo embaciado, tiro as mãos devagar e confirmo,
"Quer conhecê-lo?"
É mesmo verdade. Apanhou-me o dia.
E agora estou para aqui, a andar para trás e para a frente, com o extâse a arrumar as compras em sítios disparatados. Guardo a pasta de dentes no armário da mercearia. Pouso as garrafas no balcão, volto a pegar-lhes e pouso-as meio metro ao lado. Hei-de pousá-las em meia dúzia de sítios errados antes de as colocar no seu lugar, que o extâse pelos vistos desconhece. Vasculho os sacos à procura da pasta de dentes (queres ver que me esqueci da pasta de dentes). Encontro um pacote de esparguete. Abro o armário da mercearia. Pouso o esparguete e a pasta de dentes a rir-se para mim, encostada a um pacote de arroz carolino.
"Quer conhecê-lo?"
Dou graças a Deus (não sei muito bem porque passo a vida a dar graças a uma coisa em que não acredito) por ter um tornozelo defeituoso que não me deixou atingir uma velocidade inalcançável. Por momentos imagino a fatalidade de não me ter deixado apanhar e logo de seguida penso na fatalidade de ter sido apanhada. O que faço agora? Se o quero conhecer? Claro que sim. Mas e depois? Mas e durante? Durante é fácil. Quer dizer, é previsível: vou tropeçar, gaguejar, transpirar, dizer disparates impulsionados pelo desejo idiota de dizer coisas inteligentes, vou rir imenso (rio sempre). Rir resulta sempre, ou quase sempre. Rir é uma actividade imparcial, pode ser tudo, ou quase tudo. Quer dizer, não pode ser dor. Se calhar pode. Pode sim.
Nunca fui fã de nada até agora. Em tempos cheguei a forrar um dicionário de português com fotografias do Tom Cruise. Forrei-o com a mesma convicção com que bebia o leite todas as manhãs. Porque sim. Porque toda a gente forrava e porque toda a gente bebia.
E agora estou nisto, comovida porque,
"Quer conhecê-lo?"
e a imaginar que aquela pergunta pode querer dizer,
"Ele quer conhecê-la"
e a imaginar que se comoveu com os meus disparates. Está tudo trocado, é o que é.
Claro que o quero conhecer e claro que vou fazer todas aquelas figuras ridículas que não me apeteceu fazer nos tempos do Tom Cruise e da Madonna. E se me der na cabeça, forro um dicionário com fotografias dele. Porque agora que o dia me apanhou, vou passar a adormecer à noite com a serenidade de
- Mais um!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

tic-tac...

Preciso de escrever mas não sei o quê. Bato nas teclas à espera. Deixo-me me ir, embalada pelo som cadenciado da escrita, intercalado com o ritmo acelerado de quem apaga tudo, letra a letra. Não deixo que um dedo pousado no "delete" faça o trabalho tranquilamente por mim. Faço questão de apagar cada letra i-n-d-i-v-i-d-u-a-l-m-e-n-t-e.
tac-tac-tac-tac-tac-tac....
No seu fim, dou a cada letra a mesma importância que lhe dei quando a escrevi. Um momento:
tac.
Porque nem o tempo é corrido.
tic-tac-tic-tac-tic-tac...
Escrevo porque não posso sair com a máquina fotográfica (na realidade posso, mas não me apetece) à procura sabe Deus do quê, por isso estou aqui à procura disso mesmo.
Desconfio que estas letras vão todas direitinhas para o lixo. Amachuco a folha
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
E o cesto do lixo sem bolas de papel dentro.
Quero dizer coisas bonitas e nada. Lembro-me dele e deixo a mão ir. Para onde?
Desconfio que para lado nenhum, hoje.
O relógio
tic-tac-tic-tac-tic-tac...
e zero bolas de papel no cesto do lixo, apesar do
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
Queria que a minha mão fosse como a dele. Uma mão que dá coisas lindas com a naturalidade com que as pereiras dão pêras (acho que foi a pêras e pereiras que ele se comparou um dia). Um dia vi muitas pereiras...
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
Que disparates escreves aqui rapariga?
Pêras? Mãos? Que interessa isto?
Desconfio que vou dormir sem coisas lindas, hoje.
O tempo está a passar
tic-tac-tic-tac-tic-tac...
e as letras também
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
Desconfio que a vida acontece aos bocadinhos entre tics e tacs. O segredo é não deixarmos que a cadência doce nos embale.
Teclo agora.
tic
Amanhã vou à praia.
tac
Venho da praia.
tic
Tomo um duche para tirar o sal do corpo (que bom é tirar o sal do corpo. Tiro-o, só para poder lá voltar amanhã).
tac
Amanhã volto à praia.
tic
E à noite outra vez
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
À noite não se vai à praia (não?), por isso
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
Ando assim, entre águas doces e salgadas, a tirar coisas para as poder voltar a pôr, a juntar tics e tacs com letras e sal.
Porque ninguém vai à praia a estas horas da noite e porque me falta o sal a pesar-me nos olhos, improviso. Afinal não se chora só quando se está triste, pode-se chorar também quando se precisa.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Isto Não É Um Letreiro

Vou passar a andar com um bloco de post-it no bolso, e a culpa é dele.
(sim, eu sei, que obsessão, ele outra vez. Há-de passar. Ou não.)
Li o ajuste de contas* e no meio daquilo que me parecia apenas mais uma deliciosa crónica, levo um murro na barriga. É assim que me sinto de cada vez que me fazes aquilo.
"Isto Não É O Meu Pai" dizias às tantas.
Isto Não É O Teu Pai, António?
"Isto Não É Cinzeiro" já era bom, agora, "Isto Não É O Meu Pai"? Foda-se António. Só me ocorrem asneiras quando sou golpeada assim. Fico sem chão, desarmada, com uma vontade enorme de te dizer apenas
- Foda-se António.
Atiro um bloco de post-it para o fundo da mala e penso: da próxima vez que me servirem uma torrada com margarina, corro para a cozinha à procura do pacote de Becel, e espeto-lhe um letreiro em cima:
Isto Não É Manteiga.
E da próxima vez que me magoarem, outro letreiro:
Isto Não É Para Estragar.
E da próxima vez que a minha avó me desse um sucedânio, outro letreiro:
Isto Não É Chocolate.
(Avó, aquilo não era chocolate caramba)
"Da próxima vez que a minha avó me desse". Péssima gramática (é gramática isto? se calhar também aqui faz falta um letreiro). Com ou sem letreiro, assim se vive para além da morte. Ainda no outro dia, num acto falhado, perguntei à minha irmã
-Tens falado com a avó?
(Que tonta, rapariga)
O que eu gostava que um dia, daqui a muitos anos, quando não houver mais de mim cá em baixo, alguém perguntasse, ainda que num acto falhado
-Tens falado com a AC?
Ou que alguém me pusesse um letreiro
"Isto não é a AC"
Porque só se põe um letreiro a identificar o que não é, quando se sabe o que foi. Só se reconhece que não está lá, aquilo que nos faz falta.
A minha avó deve fazer-me falta, e o sucedânio de chocolate também.

*crónica publicada por António Lobo Antunes (Visão, 9 de Setembro de 2004)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Pastelaria e muito mais

Vou ser o primeiro bolo redondo,
feito numa forma quadrada.

E uma vez mais, o Sol

Deu-se conta que numa dezena e tal de anos nunca tinha observado cuidadosamente onde se punha o sol no seu Bairro.
Que vergonha.
Sabia que era algures para os lados do rio, tal como sabia que as galinhas não têm dentes.
Sentou-se no terraço e esperou , mas o anoitecer não lhe trouxe certezas. As nuvens teimosas borraram a precisão do acontecimento e inundaram o céu de laranja.
Registou o momento num fotograma e prometeu a si mesma não voltar a olhar.
Afinal o sol cai onde quisermos.


domingo, 25 de julho de 2010

E...?

Quando tropeço num problema, respondo-lhe com um
- E...?
"E" é a vogal mais importante. Devia, na minha opinião, ser a primeira: e, a, i, o, u.
- Perdeste o avião.
- E...?
- É Agosto e chove a potes.
- E...?
- O esparguete cozeu demais.
- E...?
Resulta ainda melhor quando combinado com um "depois".
- É Agosto, está um calor infernal e tu não estás de férias.
- E depois?
Ou talvez não. "Depois" afinal é ruído, supérfluo. "E" funciona melhor sozinho.
- É Agosto, está um calor infernal e tu não estás de férias.
- E...?
(Sozinho, sem dúvida)
- Morreu o Carlos.
- E...?
Só aqui não funciona.
De resto, "e" para vocês todos* e para mim também.

*Todos é claramente uma força de expressão

O caruncho e outras verdades esquisitas

Agora sim, é oficial. Vê-se. Por isso pode dizer-se sem medo
- Há caruncho no soalho.
Por mais que se diga por aí, que todos os sentidos têm função idêntica na nossa relação com o mundo, a experiência diz-me que a visão é de longe o mais importante. Só ela pode escrever uma verdade. Os outros sentidos são primos pobres e impotentes a insistir com a prima rica
- Despacha-te. Vem cá dar uma mãozinha. Já não posso com este tipo a duvidar da existência de caruncho. Nada rói assim, nesta gritaria. Qual é a dúvida? É caruncho caramba!
Como uma irmã mais nova que diz para a irmã mais velha
- Vai lá tu pedir à mãe. Ela a ti ouve-te.
Pois é, ou devia ser, mas afinal não é. Se não há buracos nas tábuas nem pó de madeira roída, não há provas. Logo, o caruncho é inocente, ou melhor, qual caruncho? Não há caruncho. O barulho infernal que não me deixa dormir, é outra coisa qualquer.
Chamei um senhor importante, com cartões de visita impressos em papel de primeira classe, para dar o veredicto final.
- Pois, não vejo cá nada.
- Sim, ainda não há sintomas visíveis, mas o senhor não está a ouvir o mesmo que eu? Dê-me um segundo que vou desligar o televisor (gosto desta coisa de uma única palavra me enviar para o tempo da minha avó).
- Não se incomode, não é necessário. Ouve-se perfeitamente.
E eu de sobrancelhas a espreguiçarem-se na testa...
- e...?
- Pois, mas assim, sem certeza...
- Sem certeza? Como assim?
Bateu com o martelo na mesa e encerrou a sessão. Não há cá caruncho e pronto!
É assim com o caruncho e com tudo na vida em geral. O que não se vê, não existe, mesmo quando ouvimos que está lá.
(Como farão os cegos? Jamais poderiam ser juízes.)
Penso vender a casa, mas não sei muito bem como explicar ao novo proprietário que o caruncho do soalho, não existe. Algo como
- O barulho que ouvirá à noite e que não o deixará dormir, não é caruncho. Se quiser, pergunte ao sr. importante com cartões de visita impressos em papel de primeira classe. Ele lhe dirá.
Com sorte, dir-lhe-á que a solução para o caruncho que (não) existe no seu soalho, é um par de tampões de ouvidos, ou um comprimido para dormir.
Resta a agonia da espera, por vezes demasiado longa, até ao espanto da primeira vez
- Olha... caruncho. Que desgraça. Tudo roído.
E tábuas de queijo suiço no chão, no lugar do carvalho.
(Gosta de queijo, o caruncho?)
Maltratamos os sentidos à excepção da visão. Um dia destes, os outros zangam-se e teremos um ensaio sobre a cegueira, mas ao contrário.
Agora desenrrasquem-se, a ver apenas.
E é muito bem feito.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Redação crescida

Há uns anos escreviamos redações. Hoje escrevemos crónicas (será?). Francamente não sei muito bem como isso acontece, só sei que acontece rápido demais. O tempo tem destas tretas, muda o nome às coisas sem dar cavaco a ninguém. Quando nos damos conta já não escrevemos redações. Fazemos uma coisa igual mas com outro nome.
Estranho.
Passamos a comer, em vez de papar.
Passamos a ter uma mãe, em vez de uma mamã.
Passamos a gostar (ou não) de gatos em vez de gostar (ou não) de miaus.
Deixamos de andar de pópó e compramos um carro...
O tempo é assim, caprichoso. Eu também era assim, caprichosa, nos tempos em que escrevia redações e não gostava de miaus. Depois, cresci e passei a ser assim, estranha, a escrever redações que se chamam crónicas. O tempo é um chato, porque não cresce, limita-se a passar e a fazer com que os outros cresçam, o que me parece muito injusto. Uma espécie de cabana do pai Tomás: "fazei o que ele diz e não o que ele faz".
Ontem ocorreu-me este pensamento: uma crónica, não é mais do que uma redação.
Hoje lá estava ele a chamar redações às suas crónicas.
Tenho uma tendência natural para ver nestas coincidências, algo como: convergência; destino; sinais; mensagens do além; amores inevitáveis, superiores, escritos numa nuvem qualquer. Mas da mesma forma que comprei um carro e passei das redações às crónicas, hei-de passar do destino traçado à mera coincidência.
Porque se calhar, elas acontecem mesmo e não são mais do que isso: meras coincidências quotidianas.
Porque se calhar, não somos afinal assim tão diferentes uns dos outros.
E porque se calhar, os meus pensamentos não são assim tão geniais quanto o meu ego gostaria que fossem.
Em abono da verdade, o que há de genial no facto de uma crónica ser uma redação crescida?
Isso mesmo.
Nada!

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Plágio II

"O passado é um país estrangeiro. Fazem coisas diferentes, lá."
Vou fazer de conta (uma vez mais, porque posso) que fui eu que escrevi isto.

Cu-cu

Desligo o telemóvel, e sem precisar de tapar os olhos,
-Cu-cu, a AC não está cá.
Vôo para longe, e sem precisar de tapar os olhos,
- Cu-cu, a AC não está cá.
Mergulho de cabeça num livro, e sem precisar de tapar os olhos,
-Cu-cu, a AC não está cá.
Mas está.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Magnolia bakery x Tentadora



















Fui à Magnolia Bakery comer O tal do cupcake, O original. Acontece que ao contrário das minhas espectativas, gostei. Aliás, adorei. O sacana do cupcake é de facto um delírio para os "x" (quantos são mesmo?) sentidos. Era possível cheirá-los a dois quarteirões de distância (e atenção que dois quarteirões em NY é muita coisa).
Lá cheguei, esbaforida, os pés roídos pelas hawaianas (que ideia a tua, rapariga. Hawaianas em NY?) , de braços estendidos ao longo do corpo, a arrastar os sacos. demasiados sacos. demasiado estendidos.
Bom, lá cheguei, lá me passou de imediato o cansaço. Os sacos cada vez menos...
Pus-me na fila, a fingir uma segurança novaiorquina desajeitada.
- Dois cupcakes por favor. Um de chocolate com cobertura lilás e esse vermelho e branco aí, por favor.
- Os cupcakes são self-service. Pode tirar da montra. Tem lá caixas. Neeeeext please...
- Mas, mas... na montra não tem o lilás....
- Tem sim.
- Não, não tem...
Arrancou de trás do balcão num repente assustador, em direcção à montra:
- Look miss (adoro o tom condescendente)... here they are....
- Oh, no, no. You see, i want the purple one.
- Yes. this one is the same.
- No it´s not.
- yes, it is.
- No it´s not, that one is white.
- Well, it´s the same, in a diferent color.
- Then... IT´S NOT THE SAME. GET IT!!!!
- Miss, only the color is diferent.
- Exactly! Aren´t cupcakes ALL ABOUT COLORS?!
- Neeeeext in line, please.
Trouxe o branco, comi o branco e até gostei, mas não me conformo. Se é assim, prefiro um queque de passas na Tentadora.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Tudo, é amor...

Estou zangada com o Mundo, e acho que é recíproco.
Tenho razões para acreditar, que também ele está zangado comigo.
Não o culpo. Na realidade sempre preferi a Lua.
Ele, ciumento, ressentiu-se, claro.
(Tenho esta mania recente, e suponho que nada inédita, de fazer parágrafos por questões meramente estéticas. Gosto disto. Frases curtinhas, a fazer lembrar um poema, que afinal não é, mas que se calhar até acaba por ser, mesmo quando só rima cá dentro. Ou com sorte, aí dentro também.)
Posso pedir-te desculpa por gostar mais da Lua, mas não posso deixar de gostar mais da Lua. Entendes? Posso dar-te tudo aquilo que está ao meu alcance, mas não te posso dar aquilo que não me pertence. E isso, é dar-te Tudo. Compreendes? E dar Tudo, chama-se amor.
Logo,
Amo-te, mas gosto mais da Lua.
Espero que me ames de volta, mesmo dando-me "apenas", tudo aquilo que tens para me dar. E que aproveito para te dizer, caro Mundo,
andas a distribuir mal os presentes.
Ainda assim, se é tudo, agradeço-te.
Enquanto espero que o teu tudo cresça, vou continuando a preferir a Lua e a dar-me eu, tudo a mim. Porque esse tudo, é o único que posso fazer crescer. E no fim da linha, esse meu tudo que tenho para me dar, é o único em que posso confiar. Mesmo sabendo que fazer um tudo TUDO (ainda que tratando-se do tudo de mim para mim) é difícil, este pelo menos eu posso engordar. Os outros dependem, lá está, dos outros. E os outros, são isso mesmo: os outros. Logo, têm outros tudos para alimentar.
Por isso, aqui fica:
"A mim, como se dissesse água".
E desta vez, garanto-te, não vais morrer à sede.