sábado, 25 de novembro de 2017

Oh Pedro...

Oh Pedro... como é que isto nos foi acontecer?
A ti e a nós.
A mim,
porque só posso escrever em nome próprio, mas no caso estou certa de ser tantos.
Nestas coisas da morte, Pedro, para uma descrente como eu, Pedro, é tudo muito egoísta. Hás-de perdoar-me, mas
como é que isto me foi acontecer?
Como se a morte fosse minha. E é. Tenho a certeza que é.
Chega a ter graça. Eu aqui vivinha a querer a negra para mim. A lata da bicha!, dirias a rir, sempre a rir. Quase dava um post. Dava, não dava, Pedro? E dos bons. Somos tramados. Queremos tudo para nós. Mesmo que seja uma merda - e é, Pedro! Tão grande... -, queremo-la toda para nós. Ainda que só para nos sustentar os dias vazios, esta tristezazinha saloia que nos comprova a vida,  para me sustentar este Oh Pedro... gigante de olhos inchados e nariz ranhoso.
Tudo uma foleirice pegada que havias de detestar. Mas a vida não é feita só do que se gosta, e pelos vistos a morte também não. Aguenta-te que eu estou a fazer o mesmo.
Admite,
nunca mais vamos à praia, pois não?
Nunca mais vamos ao Pessa, pois não?
Nem aos caracóis.
Nem ao cozido.
Podes dizer a verdade, sabes que sempre quis só a verdade - só a verdade... Que graça... Outro post... Agora a sério, podes dizer a verdade, eu aguento. Olha para mim já a aguentar tão bem. Faço o quatro e tudo se me pedires. Queres que faça o quatro? Faço mas diz-me a verdade,
nunca mais vamos à praia, pois não Pedro?
Oh Pedro... Oh Pedro...
Não há mais mergulhos pois não?
Nem Melides, Nem és um génio. Já não sou um génio? E agora quem é que me vai achar um génio?
Já não há mais nada disso pois não?
Oh Pedro... Eu enganei-me, pensei mal, não quero a verdade. Quero a praia. Quero o Pedro. Mente-me à vontade e não falamos mais nisso. Oh Pedro... rebentou-me um derrame do olho e tudo de tanto Oh Pedro... Aqui no esquerdo, vês? A noite toda Oh Pedro... Oh Pedro...
Se ao menos tivéssemos acreditado mais. Eu acreditei desde o início, sem esforço, era óbvio que nada disto ia acontecer, não podia. Só no finzinho é que não. No finzinho fraquejei, admito. Já não deu. Se ao menos tivesse feito um esforço para acreditar mais. Há pessoas que mexem coisas com a mente... Se ao menos acreditasse em milagres. Se ao menos tivesse abraçado árvores, ou assim...
Mas não abracei e agora também já não vou abraçar. Por isso amanhã tomo banho, lavo o cabelo, acaba-se esta pirosada toda, e logo se vê o que acontece. Já sabes, se quiseres mentir, eu não me importo.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

São Tomé como o Chiado

          Querem conhecer São Tomé? 
          Metam-se a caminho. Agora. 
          Preferem o Chiado? 
          Já deviam ter ido. No tempo dos pinheiros.  
          É o que penso, pelo menos agora. No final do texto já se vê.
          Ando quase sempre trocada mas nestes casos nem por isso. Graças a Deus, cheguei sempre  a tempo. Antes, como agora, mais que a tempo - ainda o final do texto não se aproxima e já as certezas me vacilam. Vocês não sei, mas vamos imaginar que não chegaram a tempo, para melhor servir o carácter dramático do texto:
          - Vocês nunca foram a São Tomé e só visitaram o Chiado depois dos pinheiros da Praça Luís de Camões!
          Oiçam o que vos digo; vão agora, antes que se perca ou se renove. Não que o novo não seja bom, nada disso, mas nunca igual. Por agora São Tomé ainda uma ilha toda da cor de si própria. Tudo se faz e refaz ali mesmo. O que lá há, é o que se usa, e por isso não foge à cor do que ali sempre existiu. É bonito de ver, acreditem. Já sobram poucos lugares assim. A raridade é valiosa, mas neste caso é mais do que isso. A ilha usa e volta usar apenas o que produz. Uma canseira, primitiva talvez, mas uma canseira linda para a vista de nós, miseráveis, sem identidade própria. Ou com uma identidade global, sei lá... Todos uma mistura imunda daqui e dali, já ninguém sabe de onde. Ali não. Na ilha as cores são as da terra e pouco mais. Tão pouco que mal se nota. Um quase nada que até lhe dá graça. Talvez uns ténis coloridos que o primo emigrado enviou pelo correio, ou os restos de uma boneca da moda que os voluntários trouxeram de fora. De resto, só tipos a carregar carvão em lonas que um dia serão velas de barco ou toldos  das bancas de peixe. E assim sucessivamente com o que lá há, até tudo se esbater numa coisa só, São Tomé. Coisa bonita essa, a da essência.
          E os pinheiros do Chiado? perguntam vocês.
          A Praça Luís de Camões tinha pinheiros. Tinha sim, juro. Muitos pinheiros, todos mansos.  
          Eu gosto de árvores. Adoro, até. Mas confesso que me dava desgosto vê-las ali entaladas na calçada a cuspir gosma a primavera inteira
          Não são os pinheiros, esses?
          Mas e aquele chão sempre tão sujo? 
          Pastilhas elásticas? 
          Não, os pinheiros não sabem mascar. Inclino-me mais para o suor fétido dos miúdos de 16 anos embebidos em álcool. Fazia-me confusão o aperto dos pinheiros, mas tapavam aquilo um bocado, entendem? Pelo menos visto de cima. Quando se voa ou assim, dá jeito. O professor da faculdade sempre a dizer "Ana Sofia a vista de cima é tão importante como as outras" e eu "importam-se as gaivotas?"
          Eu importo.
          No outro dia voltei à ilha. Contei dois letreiros novos. Coloridos e luminosos. Os primeiros da ilha. De empresas de telecomunicações, acho, nem quis olhar bem. Não chorei porque já tenho idade para me apoquentar com o inevitável. Com o melhor, dirão os tipos de sacos de carvão às costas.
          E estão cheios de razão.
          Eu nem sequer vivo lá.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Piroseira em ar

Hoje não inspiro. Nem expiro. 
Recuso-me a respirar, se não for para te encontrar. Que desperdício de energia se não te puder beijar. Respira para te sentir durar. Mesmo ao longe e devagar, respira para te poder achar. E beijar. Ou só adivinhar. Tranquilo, quero só calcular. Não imaginas como sou ótima a imaginar. Respira sem parar. Que seria se te soubesse sem respirar? Nem arfar, só respirar.
Ninguém respira como tu a minha vontade de te cansar. Respira por mim, prometo não te beijar. O que te custa se tens mesmo que respirar? Deixa-me acreditar que respiras para te desejar. Só te quero olhar, a respirar. Só te quero tocar. Fica tranquilo, nem agarrar, só tocar. Se soubesses do que sou capaz sem te segurar. Só voltar contigo para aquele lugar, que ficava aqui tão bem se fosse junto ao mar. Mas não é. Ou talvez seja. Afinal na praia há luar e eu tenho urgência de te embalar. 
Respira, mesmo que passe a vida a procurar. 
Prometo não te encontrar. Só te quero sentir a respirar. 
Quero-te cismar e então descansar.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Da sobrevivência

          Há quem me acuse de ser desarrumada. Eu não concordo. Sou despistada, sim. Faço desaparecer muitas coisas; esqueço-me de datas, de todas as datas, mesmo das mais importantes. Porque as datas não são importantes, os acontecimentos sim. Que me importa lembrar quando aconteceu, se me lembro tão bem do sabor do teu beijo? Tu sabes a data, eu sei o beijo. A data serve para exibir dedicação, o sabor serve para te beijar outra vez, mesmo quando não estás por perto. E isso, sim, é dedicação. Também há quem me chame fantasiosa. Com isso talvez concorde. Concordo mesmo. A data não é assim tão repugnante, faz, aliás, um brilharete com as namoradas. Ainda bem que sou mulher. Os homens percebem mais facilmente que não se ligue nenhuma a uma data. Mesmo que não percebam, na maior parte das vezes também não se lembram. Eu gosto de rir daquilo que me difere da maioria das mulheres - não quero saber de datas para nada, e não me importa um caraças que um homem veja futebol. Rio à vontade, porque também choro com as que me aproximam do arquétipo. E são tantas. Apesar de tudo, tento vê-las com normalidade. Se não existissem, eu seria um homem. E isso é que não, por amor de Deus.
          Dizia eu, antes de derrapar nesta verbosidade chata, que tantas vezes me desvia o raciocínio: há quem me acuse de ser desarrumada, mas eu discordo. Apesar de ser uma despistada incorrigível, gosto das coisas no sítio certo. Pior, fico aflita se não o encontro. Se não sei, pelo menos, de onde saiu, e onde deveria estar. É o que me acontece com o medo.
          Não com todos os medos. Alguns conheço-lhes bem o arrumo. Às vezes abro a gaveta da cómoda, só para me certificar de que estão no sítio certo. Se estiverem bem arrumados, aí permanecerão até à minha morte. Pelo menos acredito que sim. Já se passaram alguns anos desde que os fechei bem dobradinhos nas gavetas. Deixei-lhe umas bolotas de alfazema para ficarem confortáveis, e sempre que abro a gaveta, sorriem-me agradecidos. Eles também gostam de estar no sítio certo. Não são nenhuns vagabundos. Não pediram para nascer. Se os parimos devemos tomar conta deles. Mesmo dos mais horríveis.
          E é aqui que tudo muda. É sempre o filho enjeitado que tira o tapete aos pais. Mas também é ele que lhes pode certificar a mestria. Eu não sou mãe, mas já pari muitos medos. Arrumei alguns, e deixei outros tantos a flutuar por aí. Sempre que o vento sopra a desfavor, voltam inteirinhos para me assombrar os dias. Só de escrever isto já estou cheia de medo outra vez. É como tudo: os grandes nunca morrem. Nós é que temos de arranjar maneira de lhes sobreviver.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Elogio da morte

Talvez devesse deixar de fumar. 
É um vício social, pouco  mais. Afinal só gosto de fumar acompanhada. 
Mentira, Sofia. Aliás, grande mentira, Ana Sofia! 
A idade tem-te refinado na mentira. Estás cada vez melhor. Cada vez melhor no que trata de te convenceres do que te convém. Que é como quem diz, estás cada vez pior. Por agora, decido melhorar um pouco: gosto de fumar de qualquer jeito. Sozinha, ou acompanhada. Não melhoro tudo, se decido seguir a fumar... Pouco importa. Preciso de medir o tempo em qualquer coisa mais palpável que um relógio. Talvez não mais palpável, apenas mais activo. A inacção desestrutura-me. Dá-me tempo em demasia para pensar. Por isso fumo. Preciso de movimento, de sentir que faço a roda girar. Mesmo que não faça. Cada ano mais refinada, já sei... Deixa-me estar. A roda enorme, não me cabe na mão. Nem nas duas, abertas. Acendo um cigarro. Meço as horas contigo em braseiros ardidos a dois, e as horas sem ti em braseiros sugados à tua espera. Às vezes não chegas. Acendo outro. Quando chegas, um terceiro, e um quarto, os dois a arderem devagar na nossa pressa. A medirem o crepitar exacto da nossa vontade. Longas puxadas incandescentes a dois. Tão grande, a nossa urgência. Não fosse pelos cigarros, já teríamos chegado. 
Onde vamos, hoje?

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

...

Procura-me onde não sei se estarei
Desconheço para onde vou
É por isso provável que lá me encontres... 
Já cheguei?
Segura-me firme, não me deixes fugir
não sei se voltarei
Precisa-me nestas horas de nada, nem de ninguém
Procura-me, que não te encontrei
Encontra-me por Deus
juro que te procurei.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Da virtude

A virtude não está no meio, está nas pontas.
No meio está, sem dúvida, o aperto, a dificuldade séria disto tudo, porém não a virtude.
Está a escolha, a espera, a incerteza. Enfim, o caminho. Porém, não a virtude. Ser isto e não aquilo. Optar. Acertar. Cair. Escorregar. Levantar.
E apertar, apertar...
E mesmo com força, voltar a escorregar. Passar horas, dias, meses, anos, um segundo que seja, sem acertar. Só errar. Depois encontrar, segurar, e voltar a escorregar. Cair e levantar. Nunca saber, só esperar.
Aguentar, aguentar...
No meio está isto tudo, porém não a virtude.
É bonito, mas não é a virtude.
Não duvidem, meus senhores, a virtude está nas pontas. Viver sem medo. Ser assim e gostar. Não ter pudor. Não pensar muito se revelar, ou ocultar. Mostrar. Dizer, de preferência a gritar. Na virtude não há limite de coragem ou decibéis. É ter coragem de ser, e clamar
O que é a virtude?
É decidir e respirar
O resto é alcatrão para lá chegar.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Sueca de jardim

          A vida comove-me sempre mais que a morte.
Não que a morte não me comova, claro que comove, mas com a vida... com a vida é outra coisa. A morte, zás!, já a vida, zááááá..., não sei se me faço entender. Provavelmente não. A vida comove sem precisar de fazer barulho, sem se dar por ela. A morte não. A morte pinta as beiças de vermelho vivo e grita-nos aos ouvidos. A vida não tem beiças, tem uma boca pequena, vagamente animada com um rosa discreto e sussurra ao ouvido de quem a puder ouvir. Quase só respira. Quente. E a um só ouvido. Fá-lo sempre a um só ouvido. O outro, o ouvido, deve estar entretido com o resto que acontece, e que, não sendo a vida, é fundamental que exista, para que a vida possa acontecer.
          Melhor agora?
          Ainda não?
          Estão desatentos, vocês!
          Capaz de a vida vos respirar ao ouvido livre - têm um ouvido livre, espero!- e ninguém lhe obedecer. E depois bem podem libertar o ouvido, ou os dois, até, que a vida já não se importa.
          É simples,
          a vida záááááááááÁÁÁÁÁÁáááááááááááááÁÁÁÁááááááááá...
          Como o mar.
          Se não se põem a pau,
          se não nadarem,
          vem uma onda e ÁS!

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O Banquete

         
          A miúda tem qualquer coisa, mas não sei o que é.
          À conta desta coisa que, sem nome, não é mais do que coisa nenhuma, agora faço listas para tudo. Sem listas não existo. Poupe-me a esse olhar enviesado, o senhor ao fundo. Não lhe agrada, andor. Não entende nem lhe apetece esperar, faça o favor. Acalmem-se os restantes, não pretendo divagar à cerca da memória e da idade, e de como as listas ajudam a retardar o fedor do envelhecimento. Nada disso. São outras as listas de que falo, são as nossas listas. Espanta-se provavelmente porque nunca precisou de as escrever, mas que as tem, tem. Desengane-se se acha que sou caso único. Aliás, agradeça-lhes pois sem elas não poderia brilhar, como brilha, nas conversas de café, ou nos jantares de família, ou nas reuniões de liceu, ou na conversa casual, inocente, com a amiga encalorada que encontrou no supermercado. Faz sempre calor nos supermercados. Menos nos iogurtes. Até nas carnes, refrigeradas. Pedaços de corpos nas montras; o porco dividido em freguesias num cartaz lá no alto; o puto que berra porque quer o puzzle do porco; a mãe que não, que aquilo não é um puzzle; o pai que sim que o puto é um mimado por culpa da mãe que não tem mão nele; a loura nauseada que é inadmissível, que os pais não deviam trazer as crianças às compras; e o porco, ao lado da vaca, que podiam tão bem ser um puzzle. Duas febras de Arroios a ver se o puto se cala.  
          À parte de um ou outro disparate proferido, talento que herdei de família, não costumo brilhar nos jantares. Não sei o nome do filme que adorei, nem do actor pricipal, quanto mais do secundário, ou da personagem, meu Deus, nem da personagem, Ana Sofia?; não sei como se chama o restaurante vegetariano perdido no meio do salgueiro-chorão de um jardim de Lisboa, com luzinhas de Natal o ano inteiro, como é que não te lembras do nome, rapariga? Luzinhas de Natal o ano inteiro, de que mais precisas?; Também não sei o nome do primeiro Presidente da República de Portugal, nem da primeira, nem da segunda, nem da terceira. Nem sei se são três as Repúblicas, acho que sim, mas, de facto, não sei. Há quem confunda achar com saber. São coisas diferentes em profundidade. Uma é chapinhar na poça, a outra é dar um mergulhinho de mar. Para muitos, salpicar a cabeça é quanto baste. Para mim não. Desculpem. Se não engoli, pelo menos, dez pirolitos, não, não sei. E normalmente não sei mesmo, porque não mergulhei. Não experimento aqui nenhum elogio à minha profundidade de conhecimentos, nada disso. Deus sabe que não padeço desse mal, da profundidade. Invejo quem padeça, mas também não desgosto desta existência arejada, sem amarras de sabedoria. Sei o que amei e nada mais, sempre sem saber porquê. Prefiro assim, surpreendo-me mais. Depois, se calhar saber, é uma festa. É de gestão de expectativas que aqui se fala. Se esperar nada, há-de me chegar qualquer coisinha. Bastante medíocre este pensamento. Ou não. Acho que o meu pai diria que não, por isso, para mim não. Mas medíocre na mesma.
          Muito medíocre a minha prestação em jantares, dizia eu. Nunca nada de concreto para dizer, o que, mesmo entre amigos, dificulta a comunicação. Interessam-me sempre mais as impressões das coisas do que as coisas em si. É mais fácil falar das coisas do que da sua impressão. Mais fácil não será, mas mais rápido é certamente. E não temos muito tempo, é certo. Também é mais fácil ouvir, imagino. Claro que mais fácil, se mais rápido. Por isso agora faço listas de tudo. Dos livros que li, dos autores que gostei, dos que nem por isso, dos restaurantes onde fui, dos espectáculos a que assisti. E assim já posso ser à vontade, e quem sabe brilhar um bocadinho ao jantar. Saco as minha listas e depois calem-me se puderem. Fui ver o último filme de tal e tal, da trilogia de tal e tal, realizado em 19tal e tal, fulano tal e tal faz um papel estrondoso, e estou agora a ler o livro tal tal, de fulano tal tal, um talento este americano, apesar de nascido nos confins do estado de tal e tal...
          - No estado de tal e tal? Mas isso fica onde?
          Faço um esforço para não desfazer em pedaços as listas que tenho. Em nenhuma delas encontro a resposta à pergunta. Inúteis uma a uma. Inútil tu também. De tantos tais e tais sobra-te um magnífico Isso fica onde? Encho-me de R´s: Respiro fundo, retomo a compostura, rasgo-as devagarinho, e respondo num sorriso redondo
          - Ora, deixe cá ver, se o puto não desfez o puzzle, há-de ser ali por baixo da vazia.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Da segurança.

Fiquei à beira do choro.
Não à beira das lágrimas, ou com os olhos rasos de água, como fico quando alguma coisa me comove. À beira do choro compulsivo. Os olhos só vermelhos, sequinhos, à espera de rebentarem à vontade. A engolir em seco e a arranjar desculpas para sair de fininho da sala, e ir afogar  o barulho do choro nas mãos. Não queria preocupar os pais. Ou talvez não quisesse perguntas
Estás a chorar, Sofia?
nem respostas
Comoveste-te, Sofia.
Acho que não foi bem isso que aconteceu.
Não foi tanto a alarvidade do agente. Foi o miúdo.
Não sou diferente nesta matéria. A todos chocou especialmente o desespero do miúdo.
Mas acho que ainda não foi bem isso que me aconteceu.
O que me tirou três vezes da sala para me recompor, foi o terror do miúdo pelo pai. Foi o outro polícia a ampará-lo, a guardá-lo, um escudo de vidro tão forte, enorme, a proteger mas a deixar ver tudo. Um fotógrafo interessado, outro polícia de cócoras, o miúdo aflito e toda a gente a saber que o miúdo aflito.
Vai ficar tudo bem
Um abraço apertado no escudo de vidro, enorme. O miúdo agitado e uma mão larga a empurrá-lo para o peito. E eu cá de fora  a querer dizer-lhe
Não olhes para aquilo
Vai ficar tudo bem, miúdo.
Pensa só Viva o Benfica
Já vai passar
esquece tudo e Viva o Benfica
Pensa que o teu pai é enorme, não são cinco polícias blindados que o desfazem.
Não, não penses nos polícias blindados.
Esquece os polícias blindados a desfazerem o orgulho do teu pai à porrada,
a desfazerem o teu orgulho no pai à porrada.
Não se desfaz essa matéria à porrada.
E eu ali, engasgada no choro e na contenção, quase a desejar ser o miúdo. Ou ter um escudo. Mesmo que fosse de vidro.
Mesmo que se pudesse ver tudo.
As pernas oblíquas pregadas ao chão, os braços a afastarem o corpo da barriga do polícia, o choro de boca aberta. E um abraço rijo, uma mão larga a forçar-me a cabeça no peito
Vai ficar tudo bem, miúda.
Nada disto se desfaz à porrada.




sábado, 28 de março de 2015

Clap, clap, clap, Doutora!

Tenho andado demasiado sóbria para o meu gosto.
Uma pessoa habitua-se à boa vida e depois não quer outra coisa. É normal.
O ser humano é uma coisa estranha. Deseja. Alguém dá (não me venham com a treta do senhor lá de cima. Chegar até aqui deu-me uma trabalheira dos diabos). E ele ainda reclama. 
E como não é um alce que está escrever; reclamo. Claro que reclamo!
Eu pedi paz, só isso. Não mais do que isso.
Fiz tudo o que me mandaram. Gastei uma pipa de tempo e duas de dinheiro em terapia, tomei os azuis de manhã, os brancos ao lanche e o redondinho em s.o.s. Enquanto o processo durou, parecia perfeito. Uma ilusão de movimento, de caminho para algum lado. 
Ora, Dra, deixe-me que lhe diga: este sítio para onde lhe pedi que me mandasse, e para onde me mandou sem me perguntar se queria. de facto, lá chegar (o canudo é seu, convenhamos), é pior que a morte. Não acontece nada aqui. Não existe nada aqui. Quase nem eu. Está tudo tão certo que chega a não importar se está bem. Está sempre tudo tão na mesma que o adjectivo se torna dispensável. 
Está.  
E assim estou eu também. Os azuis de manhã, os brancos ao lanche e o redondinho em s.o.s....
Estou.
Está aí alguém?
E agora, o que faço com isto?
Gosto?
A sério?
E se tomasse o redondinho de manhã? Talvez a coisa se animasse.
E se fumasse um cigarro no quarto alugado? 
E se fumasse um cigarro na sala da casa do quarto alugado? Isso é que era uma barrigada de riso.
Uma barrigada de riso com uma coisa sem graça nenhuma. Nem na adolescência me ri de parvoíces do género. 
Foi aqui que me trouxe, Dra. Estou capaz de tudo por um bocadinho de qualquer coisa. 
Acendi o cigarro. 
Porra! 
E agora, o que faço com isto?
Gosto?
A sério?
No caso até é fácil. Adoro fumar. Pesa-me na consciência que mate, mas só por um bocadinho. Passa-me logo. (Estou bem resolvida, Dra. Está a ver? Valeu a pena.) Adoro puxar o braseiro com um suspiro fundo, tão fundo, e deixar sair o fumo sem pressa. Trabalha à entrada e à saída, o fumo. Um escravo. O escravo que me resta. O único escravo que me apetece. 
Assim é no sítio onde cheguei. Uma falta de graça que magoa. 
Pode ser falta de hábito. 
Mas ele há coisa mais disparatada do que me esforçar por gostar de uma coisa tão desengraçada? Não, Dra, perdoe-me o mau jeito, mas aqui não fico. 
Não é nada de pessoal, Dra, acredite, mas tenho uma casa inteira para arejar.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Lenga-lenga derradeira


Três pêlos na cara
muitas rugas no queixo
dentes num copo
cabelo de desleixo

Um altinho nas costas
raízes grossas nas mãos
tantos risquinhos na boca
quatro rodinhas no chão

Uma dor de verdade
da doença de enfeite
traz-lhe um chá bem quentinho
e arranja que se deite

Já não vai saltar ao eixo?

Sorriso grande
sem risquinhos marcados
o copo vazio
os dentes molhados

Porque ao eixo não pode
vai saltar ao pé coxinho
resta saber se alguém
lhe faz rolar o caminho

Enrola o melão
desenrola a melancia
quem fará a gentileza
de empurrar a minha tia?

É que agora não posso
estou muito atrapalhada
Não contes comigo para isso
para quê empurrar o nada?

Para que brinque um nadinha
mesmo um nadinha de nada
o parque vê-se daqui
coitada se morre sentada

Se a empurrares de mansinho
salta logo do carrinho
mal veja outro nadinho
rolado por gente ocupada

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Tempo de praia

Há muito que não tenho tempo a perder com essa história de ter frio na praia. 
E é pena, porque, tanto quanto me lembro, era bom. Bem bom, até.
A idade faz de nós especialistas à força. Deixamos de ter tempo para gostar da praia em geral e passamos a ter tempo apenas para gostar da praia de determinada maneira. Se vamos à praia e não encontramos as condições específicas que procuramos, nem paramos para pensar, seguimos caminho para a esplanada, ou para o campo, ou para o cinema. Seguimos caminho para onde aquelas exactas condições possam fazer um brilharete. 
Tenho saudades de gostar da praia e das coisas de qualquer maneira, 
de as desejar perfeitas
e de as receber como são.
Pelo meio,
breves momentos de frustração
um ralhete do pai
um pontapé à mana
a mão larga da mãe
e pumba! o rabo no chão
- Não te levantas enquanto não pedires desculpa à tua irmã.
Tenho saudades de ter tempo para esperar,
chorar 
digerir a irritação 
pedir desculpa à mana
vestir a camisola
e depois brincar.
Quando se tem tempo não importa se chove, se faz sol
se vem a caminho um furacão. 
Podemos só ficar
a olhar.
No entretanto, 
aproveita para me dares a mão.
  

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Um galhinho com pouca manteiga para a mesa do canto

          Se  alguém tiver um galhinho que me atire, agradeço. 
          Desde que flutue, serve. 
          Só preciso que alguma coisa se mantenha à tona. Reparem que não disse "me mantenha à tona". Disso já desisti. Não desisti de viver, nem nada que se pareça. Mas de andar à tona, sim. Não por cepticismo, entenda-se. Bom, talvez por cepticismo, entenda-se. A disposição para duvidar de tudo nasceu comigo, e a realidade confirma que nasceu muito bem. Por isso, Basta-me saber que alguma coisa anda à superfície, para viver mergulhada em paz. E pode ser só um galhinho. A superfície das coisas é tão boa como o seu fundo, e a diversidade é benéfica para a humanidade, dizem.
          Não quero com isto dizer que não dê aos pés e aos bracinhos para, pelo menos de vez em quando, vir cá acima respirar. Sou uma espécie de golfinho, só que bastante menos elegante. Mamífero, sim senhor, mas chega-me uma lufada de ar fresco aqui e ali, para viver feliz lá em baixo.
          Li algures que investigadores americanos chegaram à conclusão que uma noite de sono ideal deve ter, não as oito horas que sempre acreditámos, mas sim sete. A magnífica margem de uma única hora deixa-me a pensar: começamos a contar quando? quando vamos para a cama? Quando adormecemos? E quem é que conta? O qtipo que está a dormir? Parece-me pouco fiável...  E os mentirosos? Têm a certeza de que não há mentirosos no estudo? E os delirantes? Alguém ficou à sua mesinha de cabeceira, ou limitaram-se acreditaram nas respostas dadas? Eu não sou de intrigas, mas um em cada quatro indivíduos (ou lá o que é) sofre de algum tipo de perturbação mental... Estou só a dizer...
          Esta conclusão, por si só, choca-me bastante. Mas isto piora, acreditem. Ao que parece, num universo de milhares de doentes de cancro participantes no estudo, os que afirmaram dormir entre 6,5 e 7,4 horas por noite, tinham uma taxa de mortalidade inferior aos restantes. Outros estudos houve, com conclusões semelhantes, em que a precisão de horas de sono carece de vírgulas para se viver saudável, em que dormir seis hora e meia é mais saudável do que dormir sete ou oito, em que se morre mais de cancro por se dormir umas agradáveis onze horas por noite. A sério? Quem morre de cancro, morre de cancro, caramba! Não é uma hora a mais ou a menos que o vai atirar para o abismo. É mesmo o cancro! 
          Bem sei que o que escrevo é tão disparatado e impreciso quanto a notícia que li. Ainda assim, isto é um blog. Nem quero com isto dizer que não se devem fazer estudos sobre tudo e mais um par de botas, especialmente sobre o sono que é uma actividade maravilhosa, que se deve fazer bem feita. Aliás, temos de nos ocupar. Se assim não fosse a vida seria, para além de uma treta, um enorme tédio. Ocupamo-nos em nome do dinheiro para pagar as contas no final do mês, mas é do tédio que fugimos. Uns limpam escadas, outros vendem figos, outros fazem estudos... Até aí tudo certo. O que já não me parece tão correcto é que se agitem pergaminhos no ar com resultados tão pouco significativos. Não sei qual é a margem que torna um resultado relevante, mas não acredito que seja meia-hora, principalmente se falamos de doentes de cancro.
          A precisão não existe e ponto final. Quem inventou o relógio devia ser pendurado num plátano pelos pés, até ficar roxo. Não de um roxo qualquer. Havíamos de nos reunir frente ao plátano e debater durante longas horas o RAL desse roxo. O roxo ideal, preciso. Porque agora que já se inventou o fogo e a roda, a malta tem que se entreter com qualquer coisa. 
          - Tirem-me daqui, por favor!
          - Silêncio, meu anjo! Estamos a debater um assunto importante e apesar de já estares azulado, esse não me parece ainda o roxo que pretendemos!
          Claro está que quando a comunidade chegasse a uma conclusão sobre o roxo do senhor, já ele estaria verde ou amarelo. E mudo. Vicissitudes inerentes a esta mania da precisão.
          A precisão pode dar jeito em algumas matérias. Nenhuma delas, a meu ver, que separe a vida da morte por meia-horinha apenas. Por exemplo, seria útil determinar-se o RAL do galão escuro e do galão claro; os mililitros da bica cheia, da bica meia-chávena, da bica curta, da bica italiana; a temperatura exacta (em graus centígrados, por exemplo) de um copo de leite morno. Isso sim, seriam coisas úteis para o dia a dia. A mim poupavam-me uma trabalheira do caraças. Acabava-se a treta de ter de pedir café curto onde sei que o café normal vem quase cheio, para poder ter o café meia-chávena que quero. Ou a treta de ter pedir um galão claro na Tentadora, onde os tipos são semíticos com o leite, para conseguir ter o galão "para o escurinho" de que gosto, e não preto como eles querem. 
          Certo é que se as coisas fossem assim tão arrumadinhas, nunca teria tido a oportunidade de aprender a ser feliz com um café cheio, apesar de o preferir curto. Ou de ser feliz ao decidir ignorar os ouvidos moucos do empregado azedo que grita para trás do blacão
          - Pão de leite com fiambre e manteiga! 
          quando pedi um pão de leite com fiambre e pouca manteiga.
          Resumindo: bom, bom, é só precisar de um galhinho. Alguém?

quarta-feira, 9 de julho de 2014

O Valter vai (mesmo) nu

                Valter acordou diferente.
                Olhou-se ao espelho e aparentemente tudo em ordem. Talvez os olhos mais magoados do que o habitual, talvez o rosto mais severo, mas tudo na conformidade do desalento que o acompanhava há anos. Ignorou-se, longe de saber a desgraça que a noite lhe trouxera.
                A discussão violenta da noite passada deixara-o exausto, mas não era cansaço que sentia. Sabia que não voltaria a ver Leonor, mas não era angústia que o corpo acusava. Estava seguro da separação - ou da sua inevitabilidade, talvez -, mas não era alívio o que despertara com ele. Bom, talvez algum alívio, mas não aquele alívio desejável; geral, sereno. Um alívio inquieto. Alívio por se saber no caminho certo - ou inevitável, talvez -, e inquieto por ainda não ter lá chegado.
                Preparou a infusão de mel que tomava quando precisava de falar em público, e por entre o vapor adocicado que lhe embaciava os óculos a cada golo sorvido, fez uma última vistoria aos textos que preparara para a apresentação daquela tarde. Tinha uma enorme oportunidade em mãos, e apesar de ser mais da responsabilidade do acaso do que do seu talento ou determinação, decidiu agarrá-la com a avidez do filósofo promissor que fora em tempos.
                Caminhava em roupão pela pequena sala debilmente iluminada, envergando numa das mãos meia-dúzia de folhas impressas com as suas impressões, que haveriam de impressionar a plateia, e na outra, uma chávena fumegante a sacralizar o momento num ritual de defumação. Apesar da casa despida da opinião de Leonor, gargarejou, solene, o último golo de chá, pousou a chávena na mesinha de centro, e no momento em que se preparava para simular, para o vazio, a abertura da palestra, deu-se conta da desgraça que o seu corpo produzira durante a noite. Nenhuma palavra inteligível lhe saía da boca. Nada. Nem o mais pequeno monossílabo compreensível. Desesperado, movia os lábios em esgares extravagantes na esperança de se tratar de uma falha momentânea. Apesar do empenho aflito, apenas sons, harmoniosos até, mas nada que pudesse servir para esclarecer uma plateia. Valter deteve-se um momento de pé, cabisbaixo, as mãos caídas ao longo do corpo, a acompanhar a presilha do roupão que pendia felpuda e assimétrica. Com as mãos caducas das folhas impressas caídas aos seus pés, despejou o peso do corpo na poltrona. Sabia muito bem que nada daquilo era inexplicável, aliás, não seria razoável esperar desfecho diferente. Com os olhos secos de lágrimas gastas, amaldiçoou a sorte (só um bocadinho, a sorte) e os anos de conversas sérias, redundantes, inúteis, todas idênticas, todas de si para si (amaldiçoou muito os anos de conversas de si para si), com que tentara, ignorante, fazer-se entender a Leonor. Onde pode estar a inteligência de um homem que espera resultados diferentes de uma mesma acção? Em lado nenhum. Onde pode estar a inteligência de um homem que ao atirar uma bola para a esquerda, espera que ela vá para a direita? Nos últimos anos com Leonor, melhorou: passou a esperar apenas que a bola fosse um bocadinho menos para a esquerda. À primeira vista, dir-se-ia inteligente a adaptação, mas não, é ainda mais errado. Ser capaz de reconhecer que faz falta uma mudança e ser tão maricas a pedir. É preciso coragem para pedir. Quem pede não pode ter medo de que as coisas aconteçam. Ou pode, mas nesse caso é ainda mais medíocre do que o tipo da bola.
                Se a evolução da espécie fizera cair o excesso de pelagem do corpo humano por ausência de função, era apenas justo que o destino tivesse decretado o fim das suas  palavras inúteis. Odiou Leonor com a imensa paixão da revolta, e desejou, sem certezas, que o destino lhe tivesse roubado a ela a capacidade de olhar exclusivamente para a direita.
                Recompôs-se com esforço do choque inicial e tentou desenhar mentalmente uma estratégia que lhe permitisse concluir com sucesso a ansiada palestra da tarde. Não conseguiria falar, é certo, mas talvez pudesse fazer as coisas de outra maneira. Afinal tinha a apresentação meticulosamente preparada, com imagens explicativas e textos projectáveis. E havia sempre a possibilidade, ainda que improvável, de que a desvirtude da fala lhe regressasse a qualquer momento. Estava decidido a arriscar tudo para não perder a oportunidade que o destino lhe pusera no caminho. Depois de tantos anos de estudos e reflexões complexas sobre questões fundamentais da existência humana, e numa altura em que Valter já não esperava que a sua carreira de filósofo acontecesse para além das aulas que prestava a alunos do segundo ciclo de um Liceu da periferia, não iria agora permitir que um percalço, ainda que enorme, deitasse tudo a perder. Vivera durante demasiados anos quase resignado, quase satisfeito, quase feliz na sua condição de quase filósofo. Um dia, quem sabe, haveria também  de viver quase em paz com a ausência de Leonor. Nunca imaginou que esta sua quase vida pudesse um dia encher o peito de ar e atrever-se a respirar fundo novamente. Foi exactamente o que aconteceu no dia em que Horácio Estima, Presidente da Associação de Pensadores e Filósofos Portugueses lhe telefonou pessoalmente, inquirindo-o sobre a sua disponibilidade para integrar o painel de oradores das Jornadas de Reflexão Filosófica, este ano sob a temática "O papel da análise conceptual na filosofia contemporânea". Valter não se preocupou demasiado com a falta de decoro do convite de última hora, para substituir o reconhecido professor Arnaldo Mesquita que caíra na cama doente a poucos dias do acontecimento. Já não tinha idade para falsos puritanismos. Independentemente da motivação do convite, era sem dúvida uma grande oportunidade.
                Delineada a estratégia para contornar o incontornável, Valter livrou-se do conforto morno do roupão, vestiu as calças de bombazine castanha que o esperavam penduradas de véspera na cadeira do quarto, voltou a pendurar no roupeiro a camisa que tinha previamente escolhido para o grande dia, e decidiu-se pela camisola preta de gola alta. Ninguém estranha que um filósofo se apresente numa conferência sem camisa bem engomada, e talvez a garganta aconchegada lhe remediasse a desgraça. Vestiu um blazer suficientemente coçado para a imagem despojada de um pensador à séria, e correu escada abaixo tão depressa que por momentos se esqueceu de que corria, muito provavelmente, para a humilhação pública. Entrou de rompante na pastelaria, e antes que Valter, imprudente, tentasse pedir alguma coisa,
                - Bom dia Professor Valter. É o costume, não é verdade?
                Valter sorriu ao tomar consciência do que podia ter acontecido se tivesse, naquele dia, evitado a familiaridade daquele café, como fazia nos dias em que não lhe apetecia grandes conversas. Limitou-se a um aceno de cabeça afirmativo, colorido por um largo sorriso forçado. A D. Alzira  depositou o galão escuro e o queque de passas no balcão, e, felizmente, também ela não tinha grande vontade de conversar. Valter engoliu o queque em três dentadas e demorou o galão morno na garganta, inclinado a cabeça ligeiramente atrás. Mal não faria. Correu para o Fiat Uno beije que o esperava à porta, sem se lembrar sequer de se despedir da D. Alzira - ou melhor, sem sequer se lembrar que jamais se poderia ter despedido da D. Alzira -, e acelerou até ao Centro de Convenções da Ajuda. No rádio velho soava uma mistura de interferências com uma música estridente da moda. Valter aproveitou a desordem sonora para pôr uma vez mais à prova as suas (in)capacidades vocais. Apesar da descoordenação verbal agora minorada pelo ruído confuso, pode confirmar que nada mudara.
                Quando chegou ao Centro de Convenções já os trabalhos se tinham iniciado. Correu para os Bastidores onde o Presidente Horácio Estima o aguardava ansioso e quase arrependido por ter confiado tamanha responsabilidade a um simples professor de liceu. O Presidente Estima acompanhou Valter pelo braço até à saleta onde deveria aguardar a sua altura de entrar em palco. Enquanto caminhavam apressadamente falou, perguntou, tudo, felizmente, sem esperar resposta.
                - Mas onde é que você se meteu, homem? Já estava a ficar aflito. Pronto, mas agora já cá está que é o que importa. Lembre-se do que combinámos, tem um comando em cima do púlpito que deve usar para mudar a projecção. Não há que enganar.
                O Presidente soltou o braço de Valter impelindo-o para dentro da saleta, e fechou a porta com uma frase,
                - Prepare-se que é o próximo a entrar!
                Antes que tivesse tempo para aflições de última hora, ouviu-se uma voz metálica chamar o seu nome. Valter retirou da pasta as folhas impressas, ajeitou-as fazendo-as bater verticalmente na madeira da secretária que justificava o nome de sala, a um espaço tão exíguo, e depois de fazer ressoar dois ou três sons cavernosos na garganta, tentou, sem sucesso, imitar a voz que o chamara. Não conseguia sequer dizer o seu próprio nome. Nem o galão morno, nem o aconchego da gola alta tinham surtido qualquer efeito. Valter tomou consciência do sarilho em que se tinha metido e começou a transpirar terror testa abaixo. As mãos molhadas ondularam as suas notas de papel, e foi assim, reluzente de pavor, que se apresentou perante uma plateia repleta de ilustres pensadores internacionalmente reconhecidos. Caminhou timidamente no palco em direcção ao círculo de luz que gritava humilhação, ajeitou o microfone à sua invulgar altura, e com os ombros encurvados de pudor, arremessou, com um clique, o primeira imagem para a enorme parede branca atrás de si. Da plateia negra que se estendia frente ao palco sopravam murmúrios, certamente inquisitórios.
                - Quem é este? - Jurou ouvir.
                O burburinho inicial diluiu-se rapidamente na penumbra, e o sigilo do círculo perfeito de luz que designava inequivocamente o orador, quebrou-se à revelia de si próprio. Sem saber muito bem como tudo aconteceu, Valter endireitou os ombros e lançou-se destemido à punição, proferindo um encadear de sons melodiosos que acompanhavam o ritmo das imagens projectadas. O burburinho da plateia negra voltou a fazer-se ouvir. Sentado na primeira fila, o Presidente não pode ignorar durante muito tempo os olhares interrogativos dos restantes espectadores, e demasiado orgulhoso para admitir o erro da escolha, depôs com segurança,
                 - Este homem é um génio!
                A plateia, invertebrada e submissa à opinião inquestionável do Sr. Presidente, retomou a ordem e aplaudia agora a performance absurda de Valter. A sua apresentação terminou ovacionada pelo público eufórico, que de pé canonizavam, sem pensar, um equívoco. O Presidente, inicialmente inchado de orgulho pelo poder magnânimo da sua influência, e mais tarde dominado pela incerteza da real nudez do orador, manteve-se fiel à sua avaliação inicial,
                - Verdadeiramente surpreendente! De uma clarividência desconcertante!
                Valter não compreendeu de imediato o porquê dos acontecimentos. Do alto do palanque não se deu conta de que a onda de aprovação se devia exclusivamente à liderança cobarde de um, e ao aval cego de todos os outros. Dividido entre a vergonha e a vaidade e aterrorizado pela euforia da multidão, abandonou o auditório antes que o Presidente, ou alguém, o pudesse encontrar. Pensava agora em Leonor, no desejo que tinha de lhe falar, e foi com o raciocínio embriagado que decidiu procurá-la. Só poderia estar em casa, na casa da tia há anos emigrada no Canadá. Correu para lá, estacionou o carro em frente à porta, e tocou à campainha. Claro que Leonor estava em casa. Na verdade não tinha saído o dia inteiro. O tumulto da noite anterior corroera-lhe por completo o ânimo e  telefonara para o consultório a avisar que não iria trabalhar. Naquele dia Leonor não esperava nada, nem ninguém, muito menos Valter, e foi com o coração apertado que viu o Fiat Uno estacionado lá em baixo. Abriu de imediato a porta. Valter subiu os degraus aos pares e deteve-se apenas ao ver Leonor, vestida com o desleixo de um domingo inútil, e o olhar húmido a suplicar uma coisa qualquer. Uma explicação, uma justificação, ou até mesmo uma acusação, um insulto...  Valter caminhou devagar na sua direcção, dando-se tempo para ler os seus desejos. A cabeça ligeiramente inclinada de Leonor, expondo o pescoço nu à vontade de Valter, não deixava dúvidas quanto à rendição. Valter abarcou o pescoço delicado de Leonor com as mãos largas, e no momento em que os seus lábios tocaram os dela, sentiu duas lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto, incitadas pelos olhos fechados do beijo. Já no sofá, com os corpos agasalhados um no outro, Valter tentava uma vez mais fazer-se entender àquela que era, sem dúvida e apesar de tudo, a mulher da sua vida. Leonor por sua vez, escutava atenta o melodioso discurso sem sentido de Valter, e em vez de estranheza, pode finalmente encontrar o que precisava de ouvir, nas coisas que ele não dizia. 


               E agora com licença que o narrador vai para dentro. Valter e Leonor fizeram desta história o que bem entenderam, que não é mais do que as coisas como elas são - escorregadias - e o narrador reserva-se o direito de não ter saco para atirar mais bolas.